sábado, 13 de março de 2010

A CAPINHA NA ROTA DA TRANSUMÂNCIA DA SERRA DA ESTRELA

"Novembro avançava e, com ele, o frio, cada vez mais forte. Já caíra neve na Torre e nas Penhas e as ervagens de Manteigas estavam esgotadas. Era a época em que, anualmente, se iniciava a transumância, levando-se o gado para longínquas campinas, onde a invernia se fizesse sentir menos. O primeiro rebanho a abalar, para a viagem de cinco, seis dias, que tanto exigia a caminhada dali até Idanha , fora o do Canholas, com ovelhas de mais quatro pastores. Outros partiram depois e, por fim, o do Valadares, o do velho Jerónimo Latoeiro, o do Aniceto e o da tia Luciana largaram também, num só grupo, para poupar condutores. Eram quase trezentas ovelhas, brancas e negras, mosaico que cobria toda a largueza da estrada, a caminho da terra baixa. À frente e aos lados, mantinham guarda o Lanzudo e outros cães, menos o Piloto que fora considerado débil para a longa jornada. Atrás marchavam o Horácio, o Tónio, o Aniceto, o Libânio, filho do tio Jerónimo, e um burro por cada homem. Os onagros transportavam bardos e ferradas; e os seus alforges, com alimentos no fundo, guardavam espaço para a recolha de cordeiros que dessem em nascer, como sempre acontecia, durante o trânsito. As ovelhas ora marchavam lestas e muito juntas ao seu passo curto, se gritos ou pedradas a isso as impeliam; ora abriam clareiras no rebanho e cortavam à esquerda e à direita, à cata de pasto vizinho da estrada. Às vezes, os seus focinhos orientavam-se para folhagem que tinha dono sempre pronto a barafustar contra as ladras; e, por mor dessas queixas, e até de multas policiais, outras pedras e outros berros caíam sobre as famintas, que retomavam o caminho, na esperança de serem, além, mais felizes. Por Belmonte, Caria e Capinha, elas iam seguindo o seu destino, dormindo onde a noite tombava, longe dos povoados, que nas redondezas destes a cama era-lhes proibida, e levantando-se mal clareava o céu, para continuarem a marcha, sempre com os burros à cauda e, atrás dos burros, os homens. E brancas e negras, sem outro ruído que o marulho dos seus passos, e rebeldes somente quando alguma folhita verde, tão humilde como elas, se debruçava na estrada, a desafiar-lhes o apetite, as ovelhas acumulavam gratidão no espírito de Horácio e de seus parceiro por nenhuma haver ainda parido. Ao terceiro dia, porém, a Farrusca, que pertencia ao Aniceto e exibia barriga redonda que nem pipa, deu em balir...
(Texto da obra a “A Lã e a Neve” de Ferreira de Castro, Edição do Círculo de Leitores, páginas 92 e 93)

NOTA:
Por esta altura, no começo de Março, os rebanhos faziam o percurso inverso, deixando as campinas da Indanha, passando novamente pela Capinha, e regressando ao seus pastos tradicionais nas encostas mais altas da Serra da Estrela.

1 comentário:

Billy disse...

Gostei tanto deste livro! Da próxima vez que formos à Covilhã podíamos ir visitar o museu dos lanifícios, que achas?