sábado, 31 de maio de 2008

MALDITAS PRAXES

MALDITAS PRAXES ... E ENTÃO NA CHEGADA À GUINÉ EM 1968....

No início da semana passada, os jornais noticiaram que o Tribunal de Santarém condenou os sete arguidos do caso das praxes violentas na Escola Superior Agrária de Santarém pelos crimes de ofensa à integridade física agravada e de coacção na pessoa de uma colega.

Aos sete arguidos foram aplicadas penas de 160 dias de multa, proporcionais aos vencimentos de cada um, sendo a máxima de 1600 euros e a mínima de 640 euros.

O julgamento resultou de uma participação feita pela ex-aluna da instituição Ana Francisco Santos, em Março de 2003, que apresentou queixa das praxes violentas a que foi sujeita na Escola Superior Agrária de Santarém em Outubro de 2002.

Os arguidos, cinco homens e duas mulheres, pertenceram à Comissão de Praxes no ano lectivo de 2002/2003. Ana Francisco foi "barrada" com excrementos de porco no rosto e no corpo e obrigada a fazer o pino sobre um bacio cheio de bosta de vaca. Na sequência destes actos e da participação ao Ministério Público, Ana Francisco foi obrigada a abandonar a escola e a interromper o curso.

O juiz Duarte Silva considerou que "os actos praticados neste caso constituem crime, pois ultrapassaram os limites do que são as praxes e vão muito além do mínimo eticamente aceitável para pessoas com o nível cultural e ético correspondente ao grau académico que pretendem alcançar". O juiz advertiu ainda os arguidos de que "os crimes pelos quais foram condenados são graves e punidos com penas até 4 anos de prisão", deixando assim, uma mensagem ao meio académico.

Adiantou que "as praxes são práticas socialmente admissíveis, desde que não ultrapassem os limites da lei e não sejam aplicadas contra a vontade dos caloiros". O tribunal justificou "a opção pela aplicação da pena de pagamento de multas pelos arguidos, em lugar da condenação à pena de prisão", com o facto de "estarem socialmente integrados".

Estou inteiramente de acordo com a decisão do Tribunal e acho mesmo que as penas deveriam ser mais severas.

A referência a esta notícia é o ponto de partida para eu continuar o relato da minha chegada à Guiné que iniciei com o post anterior.

Aterrámos em Bissau no dia 24 de Abril de 1968, ao começo da tarde. Como viajávamos em avião militar, as formalidades eram mínimas e rapidamente vimos as nossas malas e sacos num monte, na pista, ao lado do avião. Cada um tirava as suas e dirigia-se imediatamente para a saída, passando por um pouco confortável barracão que servia de aerogare. Víamos os outros militares a entrar despachadinhos em jeeps e carrinhas que os esperavam e a desaparecerem no horizonte da estrada. Como éramos novos no local perguntámos como podíamos ir para o quartel general para nos apresentarmos. Um militar de serviço disse-nos que, de vez em quando, passava ali uma carrinha militar de transporte de pessoal e que a podíamos utilizar. Após um razoável período de espera chegou um jeep conduzido por um alferes que vinha recolher uma encomenda chegada de Lisboa e eu decidi pedir-lhe boleia. A boina do alferes ostentava as armas da administração militar. No seguimento da conversa fiquei a saber que trabalhava num das secretarias do quartel que funcionava dentro da Fortaleza da Amura. Após andarmos alguns quilómetros em estrada asfaltada, ele virou à esquerda e desviou-se para uma estrada de terra batida onde entrou aí uns cinquenta a cem metros. A seguir mandou-nos descer do jeep e disse: o Seiscentos é ali, nesta direcção e, se não tivessem bagagem, até podiam ir a pé. Eu não posso passar por lá agora porque vou com muita pressa mas, quando chegar ao quartel, mando um motorista para vos apanhar de novo e levar-vos lá. Daqui a um quarto de hora estarão de novo a caminho. Mais esclareceu que o Seiscentos era o nome corrente do local onde nos deveríamos apresentar no quartel general e que o nome era a reminiscência do batalhão que lá estivera instalado e que construíra o aquartelamento.

Estava um sol tropical capaz de derreter pedras. À volta não havia uma árvore, um arbusto que desse uma réstia de sombra para conforto. Tínhamos a roupa colada ao corpo devido à transpiração. Começávamos a sentir uma sede que nos provocava vertigens, agravada pelo pó que o capim libertava e que se ia infiltrando na nossa garganta. Via-se que ainda não tinham chegado as primeiras chuvas pois o capim estava completamente seco. Durante três quartos de hora, não passou no local absolutamente ninguém. No entanto víamos que, na estrada alcatroada, passavam, com alguma regularidade, carros civis e militares. Esgotados decidimos regressar à estrada asfaltada com a mala às costas e o saco verde debaixo do braço. Após cerca de meia hora, vimos aproximar-se um jeep militar que, desta vez, era conduzido por um capitão. Mal nos viu começou a abrandar e parou. Antes que falássemos perguntou-nos o que fazíamos ali. Riu-se ao princípio, mas começou logo a despejar impropérios contra os militares da caneta que não sabem o que é a vida no mato e que têm a lata de fazerem destas coisas. Esclareceu então que estávamos sensivelmente a meio do caminho entre o Aeroporto de Bissalanca e a cidade de Bissau e concluiu:

- Vocês foram execravelmente praxados! Eu vou levar-vos ao vosso destino!

E assim fez. Após um quarto de hora de viagem, deixou-me a mim na messe dos oficiais e fez questão de conduzir também o Sargento Santos à messe dos sargentos que era um pouco mais à frente.

Fiquei a odiar para sempre esse alferes que nos martirizou inutilmente. Quanto ao capitão guardo na mente a imagem de um homem bom e muito despachado.

Logo a seguir à Revolução do 25 de Abril, o revolver da recordações gerou-me a seguinte ideia que sempre guardei só para mim. Estou convencido de que a figura do capitão que então nos valeu corresponde, nem mais nem menos, à figura do popular Otelo Saraiva de Carvalho. Posso estar errado. Os anos e os tormentos que passei desde então afectaram muito a minha memória e o turbilhão das minhas recordações. Mas estou quase certo de que não estou errado. Se assim é, desejo que o Otelo tenha muita saúde e uma vida longa. Quanto ao alferes que nos humilhou inutilmente desejo que vá para o inferno quanto antes, se é que já não foi para lá, e que a terra lhe seja tão leve como o chumbo.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

MAIO DE 68? OUVI FALAR.... OUÇO FALAR .... MAS PARA MIM NÃO EXISTIU......

Maio de 68? Ouvi falar.... Ouço falar.... Mas para mim não existiu...

Nessa altura, tinha eu acabado de fazer 23 anos e o meu destino tinha-me desviado para o lado do mundo, oposto ao local onde ocorreu o Maio de 68, mais precisamente para a Guiné. Com efeito, na madrugada de 24 de Abril desse ano, quarta-feira, embarquei no Aeroporto de Lisboa, Figo Maduro, num NorthAtlas da Força Aérea e desembarquei em Bissau, nesse mesmo dia, quando já o calor apertava. A viagem foi directa.

No começo do fim de semana anterior, saí do quartel de Santa Margarida com a guia de marcha para a Guiné. Fora destacado para ir primeiro que a Companhia, com o 1.º Sargento Santos, integrando os dois a chamada comissão de quartéis. Iríamos receber o equipamento que iria ser entregue aos militares da Companhia logo à chegada a Bissau para daí continuarem, já armados e equipados, a sua viagem para o mato.

Aproveitei esse fim de semana para vadiar pela cidade de Lisboa juntamente com outros camaradas que tinham saído comigo de Santa Margarida. Não me lembro bem de tudo o que fiz nesse fim de semana. A minha intenção era comer e beber bem e esquecer o destino escrito na guia de marcha. Lembro-me, contudo, que, uma das passagens da vadiagem nocturna foi pela "Boite O Tosco", no Conde Redondo. Recordo essa passagem por causa de duas situações curiosas.

Primeira: Quando, com os meus camaradas, entrei no Tosco, que era numa cave, vieram as generosas meninas perguntar se queríamos a sua companhia e pedir que lhes pagássemos uma bebida. Curiosamente, a que se dirigiu a mim era minha conhecida, pois tinha sido minha colega nos Correios, quando por lá trabalhei. Ela reconheceu-me, corou que nem um tomate, gaguejou na fala, mas não se desfez. E eu também não. Quando soube que eu ia embarcar para a Guiné no dia seguinte, sentiu alguma compaixão mas não tardou a mudar para outro poiso.

Segunda: Entrou um grupo de marines americanos fardados e todo o mulherio do Tosco voou na sua direcção dependurando-se neles como gravatas. Guardo bem a imagem e o alarido da cena. Por informação das meninas souberam que nós íamos para a a guerra da Guiné e quiseram fazer grupo connosco. Afinal tínhamos algo de comum, pois eles também estavam de viagem para a guerra, se bem que para a do Vietname. Fizemos grupo por algumas horas e lembro-me de ter descido a Avenida da Liberdade com eles, já de madrugada, até à altura da Rua das Pretas. Aí eu desviei para a Calçada do Moinho do Vento, n.º 24, onde estava alojado. Ainda fiquei com os nomes e os números de alguns dos marines mas não sei o que lhes fiz.

Na noite do dia 23 de Abril apanhei um táxi no Campo de Santana. Ao dizer ao taxista que ia para o Aeroporto, ele, ao ver-me fardado, disse logo Figo Maduro e adivinhou que eu ia para a Guiné. Quando lá cheguei despediu-se de mim com muito afecto e desejou-me boa sorte. Também recordo bem este episódio pois foi a única pessoa que, nessa noite, se despediu de mim no Aeroporto. Havia, no barracão militar, muitos familiares dos militares que iam partir. Mas eu não tinha ninguém.

A viagem para a Guiné, no dia 24 de Abril de 1968, foi o meu baptismo de voo. E, talvez por isso, também a recordo muito bem. Fiquei impressionado com o espaço interior do avião. Os bancos eram feitos de barras e os assentos eram feitos com francaletes idênticos aos das mochilas e estendiam-se em duas fiadas: uma junto às paredes e outra em oval no interior, tipo mesa de jantar. Os militares que me rodeavam eram todos sargentos já com alguma idade que mostravam grande descontracção. Em breve puseram uns sacos a servir de mesa de jogo e começaram a jogar às cartas com os parceiros sentados à sua frente. Os de um lado e os do outro. Eu preferi não jogar e fechei os olhos para reflectir e ouvir melhor o rom-rom dos motores do avião que, por vezes, entrava numa espécie de pista de esqui dando origem a que o ruído dos motores aumentasse de imediato. A viagem demorou perto de seis horas.

A chegada a Bissau foi marcante: o sol muito quente, o bafo da humidade, a terra vermelha. Mais ao longe, podia ver o verde do arvoredo meio tapado pela bruma. Parecia que estava atrás de um espelho de água...

Estava na Guiné para preparar o aquartelamento da Companhia que iria chegar uns dias depois.

A Companhia chegou, recebeu armas e equipamento e continuou a viagem para o norte interior da Guiné, mais concretamente para o Olossato.

Lá não havia jornais, eu não ouvia rádio e a televisão não existia. E só muitos meses mais tarde é que ouvi falar vagamente de que tinha havido distúrbios de estudantes em França. Mas isso não me pareceu nada de anormal. Afinal em Portugal também os havia de vez em quando.

O Maio de 68 passou-se muito longe de mim....