quinta-feira, 1 de março de 2012

À memória da minha ama-de-leite

Sou o quinto filho de uma família de seis, nascido nos tempos difíceis do auge da Segunda Guerra Mundial. Catorze dias depois de eu entrar neste mundo, foi posto fora dele o Adolfo Hitler.

Nos dias de hoje em que, constantemente, ouvimos falar de crise, não conseguimos imaginar como a vida era difícil no ano de mil novecentos e quarenta e cinco. Na minha aldeia ainda não havia luz, água canalizada ou gás. As habitações não tinham casa de banho. Tudo o que alimentava a vida era genuinamente natural e biológico. Havia a febre social do volfrâmio e as famílias desfaziam-se em esforços para descobrir um filão algures no campo. Se descobriam um, guardavam sobre ele o maior segredo. Iam explorá-lo com familiares e amigos de confiança pela calada da noite.

Nasci de uma Mãe desvelada, generosa. Contudo, por qualquer razão insondável, não conseguia gerar o leite suficiente para me amamentar. Nesse tempo, ainda não havia leite em pó ou farinhas industrialmente preparadas para alimentar bebés. Havia o leite das duas cabritas que faziam parte do património da família. Mas era por natureza sazonal e durava escassos meses.

Nesse ambiente de grande carência, valeu-me a generosidade de uma mulher da aldeia, oito anos mais nova que a minha Mãe, que tivera uma criança na mesma altura em que eu nasci.

Foi ela, a Ti Felícia, a minha ama-de-leite.

Sempre senti por ela uma ternura muito especial. Quando a encontrava, gostava de ouvir as suas calorosas narrativas dos tempos difíceis em que me alimentou. E, em todas as conversas, havia um ponto comum. Aquele em que ela, socorrendo-se de um profundo suspiro, dizia:

“Eras tu de um lado e o meu Chico do outro … Os dois a mamar ao mesmo tempo…”

Esta mulher franzina, humilde, trabalhadora, com o saber de uma vida intensamente vivida, lutadora, duas vezes viúva, auto-suficiente e esclarecida até ao limite final dos seus dias, foi a sepultar no passado Carnaval. Completara noventa e seis anos no começo de Janeiro.

À memória de Maria Felícia dos Santos (1916-2012) aqui deixo estas linhas com os protestos da minha admiração e gratidão. Deixo também um abraço de muita estima aos seus filhos Chico e Alzira, bem como aos seus Netos.

5 comentários:

Ana disse...

Bonito texto!

José Freire disse...

Que surpresa!!!!Como é que te lembras destas histórias para mim completamente desconhecidas?

Pelos vistos deves ter muito mais histórias deste tipo.Vai escrevendo para que fiquem para memória........ e parabens!

Billy disse...

Que bonito! Aposto que a Ti Felícia deve estar contente por saber que te lembras dela, onde quer que ela esteja. Gostei muito de ler.

Billy disse...

Que bonito! Aposto que a Ti Felícia deve estar contente por saber que te lembras dela, onde quer que ela esteja. Gostei muito de ler.

Bau disse...

Que linda homenagem. No calor da áfrica do Sul fiquei com pele de galinha.