domingo, 24 de janeiro de 2010

UM ADEUS AO TÓ LUXO, O DOUTOR...

(O Tó Luxo em foto recente tirada por um nosso conterrâneo)

Na minha Aldeia, a Capinha, acontecem, por vezes, pequenas coisas que nos tocam e nos deixam a pensar.

Soube ontem, 23-01-2010, que o comboio da vida de um conterrâneo, um pouco mais novo do que eu, que toda a gente conhecia por "Tó Luxo, o Doutor", chegou à estação final.

Lembro-me bem do pai dele e vou recordá-lo para explicar a origem de "O Luxo".

Estávamos no fim dos anos quarenta, no período a seguir à segunda guerra mundial. Em toda a Beira Interior havia ainda a febre do volfrâmio. Grupos de pessoas, às vezes famílias inteiras, saíam para as encostas dos montes a esgravatar a terra areosa, cheia de micas brilhantes, seixos brancos e por vezes de quartzos, à procura do volfrâmio, esse minério fabuloso, o ouro preto daquele tempo, usado no fabrico de material de guerra, mais propriamente na chapa anti-bala. Como os terrenos eram alheios, saíam pela calada da noite com candeeiros de mineiro que funcionavam com água e carboneto. Uns ficavam de vigia e outros trabalhavam. A terra era transportada em talegos, às costas ou à cabeça, até ao Ribeiro das Poldras. Aí era areada em pratos largos até se ver no fundo o pó negro, por vezes com alguns grãos mais grossos, do precioso volfrâmio. Com alguma frequência apareciam também pepitas de ouro que eram guardadas até se obter uma quantidade que valesse a pena para serem vendidas aos ourives ambulantes, que, nesse tempo, passavam regularmente pela localidade. Há nos montes adjacentes à aldeia locais onde ainda podemos identificar os poços e minas que foram feitos nesse tempo. Muitos dos habitantes conseguiram então amealhar o suficiente para comprarem uma nova casa ou terras.

Pois ouvi contar que o pai do Doutor foi um explorador bem sucedido e sentiu a felicidade de ter os bolsos cheios de dinheiro. Tinha prazer em comprar os artigos mais vistosos para a sua família, como sejam sedas coloridas, relógios, correntes e fios de ouro, que os ostentava com orgulho. Também ouvi contar que, no fim de semana, costumava ir para a taberna e que, para espanto de todos, pagava rodadas sucessivas e ousava fazer cigarros usando notas de banco como mortalha, que fumava com desafiante postura à frente de todos, como se fossem saborosos charutos cubanos. E, por tudo isso, o povo lhe passou a chamar "O Luxo".

O Tó, o Doutor, ainda terá vivido algum tempo nesse ambiente de abastança e presenciado os excessos do pai, herdando o título de "Luxo". Contudo, terá passado a imitá-lo, no pior deles, o prazer pela bebida.

Mas creio que, para ele, beber não era apenas um vício. Era também uma filosofia de vida. Com o álcool sentia-se feliz e de cabeça liberta. Mais, sentia-se com autoridade para falar de coisas sérias e dar conselhos aos outros, que, casualmente, pareciam opiniões de pessoa culta. E por isso lhe chamavam o Doutor.

Mesmo alcoolizado ele era cordial e inofensivo. Embora com família, nomeadamente mulher e muitos filhos, preferia viver na mais severa solidão.

Ainda no passado dia 10 de Janeiro, estive a falar com ele junto ao Coreto da aldeia. Andava eu a tirar fotografias ao nevão que, nesse dia, cobriu a terra com um manto branco. E deu-me o conselho de ir ao café em frente do Largo de Santo António porque estava lá um boneco de neve, muito bem feito, que até tinha um boné e uma cenoura na boca em jeito de cigarro. Parecia mesmo que estava a fumar.

Soube agora que o Doutor sucumbiu, provavelmente de coma alcoólico, à porta da taberna onde habitualmente arranjava combustível e inspiração para as suas tiradas filosóficas. Estava aí marcada a paragem final para o comboio da sua vida. Aí terá caído, pura e simplesmente como uma árvore cortada, resvalando pela parede em que se encostava, até parar nas pedras frias da calçada, inanimado para sempre. O Inem, quando chegou, já nada pôde fazer.

Isto já aconteceu há uma semana, mas soube apenas ontem. Fiquei triste.

Aos seus filhos, creio que são onze, e outros familiares, deixo aqui estas palavras de simpatia, registadas no fabuloso mundo da internete, em memória do seu Pai, meu amigo, que o povo, com carinho, conhecia por "O Doutor".


Ó Tó! Eu sempre fui fotografar o boneco de que me falaste!!!

1 comentário:

Billy disse...

Gostei muito de ler este teu post. Acho que o Tó Luxo deve ter ficado contente por saber que fotografaste o boneco de neve. :)