domingo, 30 de maio de 2010

A LUZ, OS SONS, OS CHEIROS E OS MOVIMENTOS DO AMANHECER

É muito raro poder passar uma noite tranquila com um só sono. Há sempre um primeiro, quase sempre agitado, muitas vezes com pesadelos de violência, a que se segue uma insónia renitente que procuro orientar no sentido da tranquilidade para dar lugar a uma ou duas horas de descanso reparador. É assim há já quase quarenta anos. Uma sequela da guerra da Guiné.

Hoje assisto ao aparecimento deste tranquilo amanhecer primaveril, para reviver a luz, os sons, o cheiros e os movimentos que observei em manhãs na minha infância.

Agora a paisagem a nascente aparece recortada, em jeito de sombras chinesas, no céu que começa a clarear. E já uma andorinha está poisada ali em frente no fio da electricidade, soltando um chilreio triste como se estivesse a querer contar-me qualquer mágoa e explicar-me a razão que a leva a especar-se ali e a não acompanhar as companheiras que já andam divertidas a fazer voos em subidas e descidas vertiginosas.


A temperatura é de dezasseis graus e há um cheiro a humidade onde se misturam os muitos odores das flores silvestres que, no conjunto, dão o maravilhoso cheiro do campo.

Um vulto negro aparece na estrada, em passo apressado, na direcção da horta.


Antigamente, a esta hora, seriam muitos vultos, de pessoas e animais, pois havia a urgência de aproveitar a manhã de domingo para ir regar os tomates e as alfaces, as espécies que, nesta altura do ano, carecem desse cuidado. Imagino que este vulto vai apressado por uma razão diferente. Para chegar ao campo, onde, na mais completa liberdade, possa desopilar as primeiras necessidades do dia. Os cubículos das modernas casas de banho não são suficientemente confortáveis para quem sempre gozou do ar matinal e da liberdade que o campo proporciona.

O galo está de novo a cantar no povoado ali em frente, seguindo-se o latido de um cão, destoando da sinfonia dos chilreios de múltiplos tons e ritmos dos pardais, das andorinhas, carriças e rouxinóis.  E agora é um cuco, ali mais para sul, a que responde outro no bosque a nascente.

Cuco da ramalheira quantos anos me dás de solteira!

Cada vez que o cuco cantava era um ano. Se o cuco ficava silencioso era o desapontamento. Está visto, fico para tia! Desabafavam.

Era assim que as minhas irmãs procediam no passado quando ouviam cantar este mestre dos bosques.

O sol já varre as copas das árvores e os pardais assomam aos buracos da parede onde têm os ninhos.


E eis que há um que chega, com qualquer coisa no bico e fica uns segundos poisado na entrada olhando para todos os lados a observar se há predadores. Entra e torna-se imediatamente audível a choradeira dos filhotes que disputam a alvíssara do pequeno almoço. Foi breve a sua visita pois já lá vai de novo, rodopiando no ar até se perder por detrás do telhado da casa vizinha.


E agora o sol já enche quase toda a paisagem, pairando no vale da Ribeira uma extensa névoa transparente.


 Ali em frente, na cumeada do telhado, uma poupa esquadrinha um ponto de destino, talvez um dos muitos tufos de malmequeres amarelos, onde possa vislumbrar uma qualquer forma de alimento.

A mãe natureza despertou na sua maior força dando sentido a este excelente tempo de Primavera.

2 comentários:

Bau disse...

Esta madrugada (e nós) temos sorte por te ter a ti para a descrever. No entanto, espero que as próximas madrugadas sejam de soninho reparador!

Billy disse...

Já tinha comentado no Páscoa e comento aqui também: que bom relato, senhor cronista dos costumes capinhenses!