domingo, 18 de abril de 2010

JORNAL DO FUNDÃO, CENSURA E MUITO MAIS

1. O Jornal do Fundão, que recebo semanalmente, faz referência, com regularidade, a textos que, no passado, foram cortados pela censura. Gosto de observar essa rubrica para avaliar, a partir da natureza do tema censurado e do vigor e rasgo do traço do censor, o empenho e competência com que este exercia a sua alta função, ou, dizendo quase o mesmo por outras palavras, o rancor evidenciado em relação ao Jornal do Fundão, ao seu Director e aos assuntos da Cova da Beira.
E sempre que vejo tal rubrica, vem-me à memória uma pitoresca história de uma mesquinha atitude de censura, que, apesar da sua minúscula dimensão, me parece ter interesse suficiente para ser aqui contada.

2. Em 1966, era eu funcionário de uma das Repartições da Direcção-Geral da Contabilidade Pública. Aconteceu que, certo dia, um dos colegas teve a brilhante ideia de pegar numa folha A4, desenhar um cabeçalho, escrever um editorial e definir algumas regras de circulação e colaboração para aquilo que apelidava de jornal da Repartição. No cabeçalho escreveu, em letras bem desenhadas, “O GUARDANAPO” e no editorial explicou que se tratava de um jornal dos funcionários a que chamava Guardanapo porque iria circular de mão em mão, todos tendo o direito de se limpar nele, isto é de dar alguma colaboração com escritos de interesse. Tinha três colunas em cada página. Só podia ser escrito à mão e cada novo texto não podia exceder o tamanho de uma coluna.

A ideia pegou e o Guardanapo passou a ser um meio de informação dos factos sociais: nascimentos, casamentos, namoricos, etc. Às vezes escrevia-se uma anedota, outras uma crítica social mais ou menos velada, mas tudo dentro dos limites dos bons costumes e da ordem constitucional estabelecida.

Nunca cheguei a perceber a razão pela qual o Guardanapo chegava à minha mão quase sempre com a primeira e as dez últimas páginas. Nem nunca soube quem tinha o direito de reter e guardar as páginas mais antigas.

3. Em Janeiro de 1967, comecei o meu percurso do serviço militar obrigatório, começando pela Escola Prática de Infantaria de Mafra e seguindo depois um longo percurso que passou por Beja, Lamego, Chaves, Santa Margarida, e, já na Guiné, por Bissau, Olossato, Bula, Có, Pelundo, Teixeira Pinto, Cacheu e, por último, já em Lisboa, pelo Hospital da Estrela. Aqui, após alguns meses de internamento, recebi uma guia de alta e de marcha para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda. Aí, finalmente, recebi uma guia onde estava escrito que passava à disponibilidade a partir de tal data.

No dia a seguir a essa data, apresentei-me na Secção Administrativa da Direcção Geral, na altura dirigida por uma senhora que, apesar de ter quase setenta anos, tinha relutância em aposentar-se. Essa senhora disse-me para me apresentar no dia seguinte, já que, naquele dia, não tinham condições para me disponibilizar um local de trabalho. E, no dia seguinte, lá estava eu novamente para ser conduzido a uma das Secções da Repartição da Direcção-Geral onde me encontrava antes do serviço militar.

Algum tempo depois, verifiquei, com agrado, que o Guardanapo me visitava e aí escrevi umas notas a anunciar o meu regresso. E o Guardanapo lá seguiu o seu caminho limpando as mãos dos colegas leitores.

4. Marquei normalmente as férias desse ano. Porém, recebi mais tarde uma informação da tal Senhora da Repartição dizendo que, como eu tinha interrompido o vínculo da minha ligação à função pública por um dia, já não tinha direito gozar férias nesse ano. Pedi esclarecimentos e a senhora não podia ter sido mais clara. O dia da apresentação não contava como serviço. Como só tinha começado a trabalhar no dia seguinte, tinha interrompido o vínculo e por isso perdia as férias que poderia gozar nesse ano e o respectivo subsídio.

Isto custou-me muito.

Na próxima passagem do Guardanapo, limpei bem as mãos nele e critiquei duramente a Senhora. Não fui meigo para o tratamento injusto que a Repartição me estava a dar. Contudo, os termos usados, apesar de muito duros, eram respeitosos.

5. Aconteceu que, a certa altura, os colegas começaram a estranhar a não passagem do Guardanapo e a questionar-se sobre onde estaria o dito. Ninguém sabia de nada. Já se falava em fazer um outro, mas instalaram-se os receios…

6. Certo dia, o meu chefe de Secção dirigiu-se a mim com um ar sério e disse-me: por favor venha comigo ao Chefe. E lá fui eu atrás dele até ao gabinete do Chefe que era no fim de um longo e amplo corredor na ala sul do Ministério das Finanças, no Terreiro do Paço. Entrámos. O Senhor Chefe estava de pé atrás da secretária, mas, para espanto meu, tinha o Guardanapo na frente. Pegou nele e leu pausadamente a minha nota sobre o problema das férias. No fim perguntou-me se tinha sido eu que escrevi aquilo. Disse-lhe que sim de um modo claro e peremptório, acrescentando logo que não tirava uma linha àquilo que tinha escrito. Com voz excedida começou a debitar um raspanete mais assanhado ainda por eu deixar de olhar para ele e desviar os olhos para o Tejo que, estando um dia de sol, dali se alcançava muito bem. Viam-se claramente a Estação Sul e Sueste, os Cacilheiros a partir e a chegar e, mais ao fundo, os estaleiros da Lisnave e o Seixal. Mais do que uma vez o Chefe sublinhou que a Senhora mais não tinha feito do que defender os interesses do serviço.

7. O Guardanapo ali terminou, com esta original atitude de censura, o seu interessante percurso de mais de quatro anos e ninguém mais teve a coragem de o fazer ressuscitar.

8. Umas semanas depois despedia-me amavelmente do Chefe pois, entretanto, tinha sido chamado para outro emprego a que tinha concorrido, mais bem remunerado e com melhores condições.

E nunca mais ouvi falar desse interessante jornal que foi o Guardanapo.

2 comentários:

Bau disse...

Que gira a ideia do "Guardanapo"! E que giro o episódio. Dava-me jeito agora um "Guardanapo" também.

Billy disse...

Gosto muito do "Guardanapo"! Com esta tecnologia toda, faz falta a sensação da escrita (partilhada) sobre papel.