quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Panamá 2011 - A história do Chico

O Chico é o nome popular do marinheiro que nos acolheu durante três dias no seu catamaran no Arquipélago de San Blas.

Durante esses dias, ensinou-nos muitas coisas, nomeadamente sobre a arte de marear e sobre as tradições dos índios kuna, habitantes tradicionais do local que visitámos.

Eles procuram manter os seus hábitos ancestrais. As mulheres, com os seus trajes garridos, são as representantes mais visíveis desse interesse. Vivem a vida em harmonia com a mãe natureza. O trabalho para eles reduz-se a pescar ou cultivar apenas o suficiente para o sustento da família. Desconfiam do valor do dinheiro e preferem a troca directa dos produtos. E disse-nos o Chico que eles não tinham no seu dicionário ancestral a palavra trabalho. E que agora usam, para o efeito, a correspondente palavra alemã: arbeit. Isto porque, num dado momento perdido na linha do tempo, passou por ali uma frota de barcos alemães que os recrutaram, talvez à força, para trabalharem. E aí eles ficaram a saber o que é o trabalho por conta de outrem e adoptaram a correspondente palavra alemã.

O Chico contou muitas outras histórias. Mas não se deteve a contar a sua. Mas penso que, juntando dados daqui e dali, a sua história será mais ou menos como a relato a seguir.


O Chico

A palavra Chico sugere-nos logo que estamos perante um indivíduo de origem e cultura hispânica ou sul americana.  Instintivamente ocorre-me logo a imagem do Ti Chico das Sardinhas que os veraneantes de Armação de Pêra conhecem muito bem. Assim, foi uma surpresa saber que o Chico é austríaco e que nasceu há cinquenta e dois anos numa povoação próxima da cidade onde nasceu Mozart.

Aqui fiquei intrigado a perguntar-me sobre o que terá levado um austríaco a ser marinheiro a tempo inteiro. A Áustria nem sequer tem mar.

Aos poucos o Chico foi deixando cair a sua história.

Era engenheiro na companhia das águas. Algum grande desgosto deu-lhe volta à cabeça e decidiu que havia de sair da vida e do ambiente em que se encontrava. Viu no jornal o anúncio de um barco muito barato que se encontrava na Marina de Trieste. Foi vê-lo e achou que valia a pena comprá-lo. O barco estava fechado havia três anos e pertencera a um marinheiro que morrera subitamente de ataque cardíaco,  mesmo antes de iniciar mais uma das suas longas viagens. O Chico descreveu a primeira entrada no barco como uma descida aos infernos. O anterior dono tinha-se guarnecido de tudo o que precisava para a longa viagem. E tudo tinha ficado a bordo durante três anos sem qualquer refrigeração ou outro tipo de cuidado. A cafeteira ainda tinha restos do último café feito pelo anterior dono. Ele e a namorada  meteram mãos à obra para limpar tudo e restaurar o barco.

Depois foram viagens de treino entre os portos da Itália de leste e da Croácia.

E veio o momento de ele e a namorada começarem a grande viagem da volta ao mundo com que, a partir de certa altura, começaram a sonhar. Passaram pelo Mediterrâneo e Gibraltar. Estiveram a vinte milhas de Portugal e ainda sentiram vontade de ir ver o Algarve. Mas seguiram em frente em direcção às Canárias. Nesse percurso, enfrentaram uma tremenda tempestade, a maior que o Chico já apanhou na sua vida de marinheiro. Passou por Cabo Verde. A travessia do Atlântico demorou vinte dias. Ele e a namorada revezavam-se na condução do barco por turnos de oito horas.  Os dias passavam e nada acontecia. Na maior parte do tempo, o barco seguia sozinho com o piloto automático.

A certa altura, porém, a namorada foi acordá-lo em alvoroço. Correu para a coberta do navio e viu que estava já próximo na rota de colisão com um grande petroleiro. As manobras de emergência num barco com as velas içadas são sempre mais demoradas. Em sufoco, tentou resolver a situação. E eis, se não quando, que o petroleiro mudou de direcção. Falou via rádio durante alguns minutos com o comandante do petroleiro que lhes perguntou se tudo estava bem com eles e se precisavam de alguma coisa. Que o piloto automático do petroleiro os tinha detectado e tinha mudado bruscamente o sentido da navegação. O Chico disse-lhe que estava tudo bem e pediu ao comandante do petroleiro para mandar um email aos seus pais para a Áustria a dizer que os tinha encontrado no Atlântico e que tudo estava bem. O comandante do petroleiro tomou nota do email. Disse que ia mandar de imediato uma mensagem. O email ou a mensagem nunca foram recebidos pelos pais do Chico.

O Chico está em San Blas há cerca de cinco anos. Descobriu aqui um nicho de negócio e nomeou um agente na cidade do Panamá. Também abriu uma webpage promocional (www.chisailing.com).

O Chico despediu-se de nós com tristeza dizendo que nós éramos os últimos clientes dele em San Blas. Que ia receber só mais uns amigos que já não via há cinco anos. E que depois ia atravessar o Canal para o lado do Pacífico e continuar a sua viagem à volta do mundo. O próximo destino para passar algum tempo seria o Arquipélago dos Galápagos ao largo do Equador.

Pode ser que o Chico, ou antes o Sr. Herbert Winkler, um dia nos visite em Lisboa.

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