1. Era o meio da tarde do dia de S. Pedro de 2012, sexta-feira, quando cheguei à minha aldeia. Logo me disseram que ia haver um funeral. Perguntei de quem era mas ninguém me soube dizer ao certo. Era de uma senhora de que ninguém sabia o nome e que, após alguma insistência, me identificaram como sendo a mãe de Fulano tal. Não identificavam o Fulano pelo nome próprio mas sim pela alcunha. É que, na minha aldeia, há o estranho costume de as pessoas serem reinventadas, ou clonadas, através de alcunhas. Assim todas as pessoas passam a ser vistas como se fossem actores disfarçados numa peça de teatro ou vistas numa imagem de espelho. Se o funcionário do registo civil viesse fazer a conferência das pessoas pelos dados do registo e perguntasse onde está o senhor que foi registado no dia tal, ninguém lhe saberia dizer quem é. Ele teria de escrever “desconhecido” ou mesmo “já não existe”. E teria razão porque, na verdade, só são conhecidos os clonos das pessoas que deveriam existir.
2. É costume as pessoas da aldeia acompanharem os seus conterrâneos à última morada, mesmo que não os conheçam bem. Ao princípio, eu pensei que o faziam por desinteressada solidariedade. Mas depois convenci-me de que o fazem também por interesse próprio. Querem ter a certeza de que ainda podem andar esse caminho pelo próprio pé.
3. Já se começa a ouvir ao longe um rumor de coro de oração colectiva no tom de mi da escala central. É o funeral. Vem debitando Avé Marias em que a primeira parte é dita por uma só voz e a segunda por um coro relativamente numeroso de vozes femininas, acompanhado num tom mais baixo pelo ronronar do motor da carrinha mortuária. Em apenas três minutos, chegam ao ponto em que me encontro. Os homens vêm à frente organizados em pequenos grupos que, por sua vez, falam entre si das coisas mais diversas. Vem a seguir um outro grupo, com mais mulheres do que homens, que, vestindo opas pretas, erguem a cruz processional e as bandeiras das confrarias. Junto-me ao grupo dos homens que seguem à frente nas suas conversas, alheios à prece colectiva. É um instante enquanto se chega à porta da capela do cemitério. Os senhores da funerária levam a urna para dentro. Uma parte dos acompanhantes entra. A maioria fica cá fora. Lá dentro forma-se um círculo à volta da urna que é colocada a meia altura sobre dois suportes. Mais algumas Avé Marias pela alma da nossa defunta irmã e por todas as almas que repousam neste cemitério. Que descansem em paz, ámen. O Padre oficiante tira a estola roxa e dobra-a em jeito de livro e sai e a quase totalidade das pessoas saem com ele. O verdadeiro funeral acabou ali. Os senhores da funerária levam agora a urna para o local onde vai ser enterrada. Mas isso já não é funeral, é o inevitável enterramento.
4. Fiquei a pensar nos funerais de antigamente. Vinha uma campainha à frente. Havia a caldeirinha e água benta e o hissope. O livro dos ritos que o Padre abria duas ou três vezes em pontos de paragem obrigatória. Era aí que as orações eram feitas, algumas delas em latim. Recordo-me de ouvir o simbólico “De profundis” que o Padre recitava enquanto aproveitava para passar a vista pelas pessoas que ali estavam à volta.
Era costume o Padre acompanhar os defuntos até estes descerem à terra. Várias vezes pegava no hissope, molhava-o na caldeirinha e benzia a terra e a urna. E tudo acabava com uma última bênção, após o que solenemente anunciava: podem cobrir. Sucediam-se automaticamente os gritos e sentidos prantos dos entes queridos.
Os funerais de antanho eram a sério. Agora até os funerais já são de plástico.
5. À saída da capela estava o filho da senhora defunta facilmente distinguível por vestir uma camisa preta. Cumprimentei-o com os formais sentidos pêsames e perguntei-lhe que idade tinha a mãe. Ele fixou-me e balbuciou um tremular de lábios acompanhado por um instantâneo enrugar da face. Mas não foi capaz de responder. Uma mulher veio em seu auxílio e disse:
“Tinha 97. Eu nem sabia que esta mulher ainda era viva. Desde que o marido morreu, e isso já foi há anos, nunca mais quis sair de casa. Fechou-se lá e não abria a porta a ninguém. Nem as senhoras do Centro de Dia conseguiram fazer nada dela. Só o filho é que lá conseguia ir de vez em quando. Ontem ele foi lá e já a encontrou gelada. Estava morta há vários dias. Já cheirava.”
6. Como terão sido os dias e as noites desta mulher que optou pela solidão absoluta? Para ela talvez não houvesse tempo com dias e noites. Talvez apenas uma ideia fixa, quem sabe, a imagem do último momento de felicidade que terá tido com o seu defunto marido.
Como foi possível isto acontecer nos tempos actuais?
Na verdade é temível a solidão absoluta.
sábado, 7 de julho de 2012
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