O Kriola parecia ter espaço para tudo e poderia muito bem servir para uma nova arca de Noé.
Num dado momento passou no céu um avião da TACV que ia aterrar no aeroporto da ilha. Pensámos como seria mais fácil regressar à Praia se tivéssemos conseguido viagem num deles.
Chegou o momento de regressar à nossa sala VIP. O nosso companheiro advogado que também tinha saído veio dizer-nos que tinha chegado a altura de voltarmos. Aí apresentámo-nos e cumprimentámo-nos mas com grande economia de palavras. Não vimos da parte dele qualquer interesse em continuar a conversa.
O barco largou do porto dando início à segunda parte da nossa viagem de regresso à Praia. Em boa verdade esperávamos que fosse pelo menos idêntica à viagem da vinda da Praia para o Fogo.
No início, o nosso companheiro ainda pegou nos seus papéis para trabalhar. Mas teve de os arrumar porque a ondulação estava a crescer. Como o barco era um catamarã sentíamos o estrondo das ondas a desfazer-se contra a quilha direita que ficava mesmo por baixo do quarto em que nos encontrávamos. Por vezes o choque era tão forte que parecia que o barco se ia partir em dois. As nossas mãos seguravam sacos de plástico meio abertos para o que desse e viesse.
As oscilações eram cada vez maiores. Tinham-nos aconselhado a fechar os olhos e a fazer corpo morto, deixando-nos entregues aos movimentos das oscilações do barco e tentando adormecer.
O nosso companheiro tinha arrumado todos os seus papéis e o computador. Deixou apenas em cima da mesa o telefone celular que ia escorregando de um lado para o outro em cima da mesa.
Estávamos todos de olhos fechados na sala, quando o telemóvel que dançava começou a gritar assassinos, assassinos. Como o nosso companheiro demorou algum tempo a atender, os gritos repetiram-se aumentando de intensidade. Depois atendeu e lá fez a conversa dele. Esperem até eu chegar. Só assinam na minha presença, etc. E aproveitou o fim da conversa para protestar contra as condições da sala VIP. As cadeiras são mais desconfortáveis que as da sala de passageiros.
Tentava proteger-se do sol com o individual de plástico que procurava fixar no vidro da janela. Mas o plástico não colava e caía de imediato. O sol batia-lhe em cheio na cabeça e ele ia dizendo que nem cortinas têm. E pagámos mais para estar aqui. E a renovação do ar é péssima. Isto está tão abafado…
De súbito o telefone tocou novamente e desta vez já demos atenção ao início do toque que começava baixinho. Mataram o Amílcar Cabral! Mas depois o nível sonoro aumentava em cada palavra: Assassinos! Assassinos! Até que ele carregou numa tecla e o grito ficou cortado em assassi!!!, já sem o nos.
Houve uma vez que entendeu não atender. O telefone repetiu várias vezes assassinos, assassinos. Desistiram de chamar ou a ligação foi para a caixa de mensagens. Mas os gritos de assassinos ficaram a fazer eco nos nossos ouvidos.
Já levávamos bem uma hora de viagem e a porta da sala abriu-se. Cambaleando entrou um rapaz louro da casa dos trinta e tal que se sentou no banco livre entre mim e o advogado. Vinha com um ar assustado, cadavérico. E logo se agarrou ao saco de plástico. Pouco depois levantou-se subitamente e foi, apoiando-se aqui e ali, em desequilíbrio para a casa de banho e nem teve tempo de fechar a porta. Ouvimos, vimos e cheirámos uma autêntica trovoada. Passados uns cinco minutos regressou ao lugar e logo apoiou a cabeça no braço que tinha sobre a mesa. Mas como precisava das suas mãos para abrir o saco acabou por se dobrar de tal modo que tinha a cabeça colada aos joelhos meio metida no saco de plástico com vómitos sucessivos. De vez em quando levantava-se para respirar fundo e parecia sentir-se um pouco aliviado. Mas logo voltava o sufoco e lá enfiava novamente a cara dentro do saco. Eu ia pensando coitado não tarda a vomitar os testículos para cima da mesa. O pior é que à frente dele está a minha mulher. Mas não faz mal que ela também leva a cara enfiada no saco.
A certa altura até eu já me sentia agoniado e meio tonto com os ruídos e com o cheiro. E lá voltava a história do mataram o Amílcar Cabral, assassinos, assassinos. Pensei que se pudesse ir à sala geral fazendo de conta que ia ao bar pedir água ficaria aliviado. Mas mal abri a porta veio-me à cara um cheiro abafado e tão intenso a vomitado que me pareceu que era daquela vez que a minha carga ia ao mar. Sentei-me de imediato e abri também o saco de plástico. Mas, de olhos fechados e com o corpo morto, consegui aguentar-me.
A tormenta prolongou-se por três, quatro, cinco horas. E só então o mar amainou um pouco, sinal de que estávamos quase a chegar ao porto da Praia.
Finalmente o barco atracou. Os passageiros dirigiram-se em turbilhão para a porta de saída. Nós, porque estávamos na outra ponta, na sala VIP, tivemos de aguardar pacientemente a respirar aquele bafo medonho e ir seguindo à medida que a fila se escoava, evitando pôr os pés nas manchas salpicadas de vomitado.
E finalmente chegou o ar fresco. É só esperar pelas bagagens e apanhar o táxi. Mas isso já não custa nada.
Nota: No Kriola não há o costume de iniciar as viagens com informação sobre procedimentos de segurança e de salvamento.
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