terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 18. A parte norte da ilha de Santiago é linda.

Depois de termos uma ideia do que é a vila do Tarrafal sentimos curiosidade em conhecer a parte norte da ilha de Santiago que, no percurso que seguimos quando íamos da Praia, nos pareceu muito bonita. Na verdade, o relevo com vales verdejantes que se alargavam até ao mar e as montanhas de formas e nomes bizarros, como seja a serra da Malagueta, motivaram-nos para que não perdêssemos a oportunidade de conhecer melhor estas paisagens. E fizemo-lo em dois percursos. O primeiro saindo do Tarrafal pela estrada do nordeste da ilha que passa pela Praia de Porto Formoso e pela Calheta de S. Miguel, cortando, logo a seguir, para subirmos para a zona montanhosa do centro da ilha e retomarmos a estrada que liga a Praia ao Tarrafal. O segundo seguindo junto à costa oeste pela estrada que vai do Chão Bom até Ribeira de Prata.

O primeiro percurso retemos as muitas curvas da estrada ladeadas por campos cobertos de canas de milho secas e sempre com muitos animais, vacas, cabras, cães e até perus, pastando livremente e, por vezes, passeando-se desacompanhados no meio da estrada. Vê-se quase sempre o mar, aparecendo aqui e ali bem desenhado o traço de espuma branca que o separa da terra.





Merece uma referência especial a nossa ida ao campo dos Rabelados, assinalado a certa altura do percurso, obrigando-nos a um pequeno desvio para a direita.







A visita foi breve devido ao facto de querermos ver muita coisa em pouco tempo. E a verdade é que não sabíamos nada sobre o que eram os Rabelados, para além de que era um grupo social isolado que vive da agricultura e da arte que produzem, uma espécie de colorida pintura naïf sobre temas e costumes da comunidade local. Recebeu-nos o chefe da comunidade, Sr. Moisés, tendo o encontro, no início, decorrido no ambiente de reservas mútuas com muita economia de palavras de parte a parte. Pensávamos que se tratava de uma comunidade densamente fechada que apenas nos abria a porta da loja para vermos e comprarmos as suas obras de arte. Acabámos por comprar uma pintura o que originou um ar de muita satisfação na cara do Sr. Moisés que, logo a seguir, nos convidou para irmos ver o acampamento, onde nos guiou com muita simpatia e franqueza ao ponto de nos introduzir na sua própria casa onde se encontrava a sua família. Respondeu com naturalidade a todas as nossas perguntas e, à saída, mostrou-nos mesmo muita cordialidade.

Sinto interesse em conhecer melhor a história desta comunidade e passar ali mais tempo com aquela gente boa.

Só mais tarde é que perguntei ao Google quem eram, na verdade, os Rabelados, palavra crioula correspondente à portuguesa “Rebelados”. E vi que, na origem, está uma comunidade com costumes ancestrais muito coesa e unida pelas suas crenças religiosas, com fundamentos na religião católica. Em 1940, o bispo com autoridade na região mandou para lá uns padres idos da Europa que procuraram introduzir à força alterações profundas nas práticas religiosas que a comunidade seguia. Ela reagiu rebelando-se contra eles, isolando-se para continuar as suas práticas tradicionais. Este tipo de rebelião não é acto isolado na história da igreja católica. Referimos, a título de exemplo, a questão dos ritos na China, onde os jesuítas com a sua intransigência causaram enormes danos à Igreja. E o caso de Monsenhor Lefèbre que recusou algumas das alterações saídas do Concílio Vaticano II.

Se um dia voltar ao campo dos Rabelados de Cabo Verde, tentarei estar mais tempo com esta comunidade e levar o espírito preparado para os ajudar mais. Retenho na memória o grupo de encantadoras crianças que por ali brincavam e o cheiro da cachupa que uma mãe acabava de preparar para alimentar a sua família numa fogueira ao ar livre quase em frente da casa do Sr. Moisés.



O percurso pela costa oeste, desde o Chão Bom até à povoação da Ribeira de Prata, é também muito bonito. Deste lado da ilha é possível ver a ilha do Fogo. Tudo depende do local em que nos encontramos, das condições atmosféricas e do grau de visibilidade. Normalmente não se vê nada. Por vezes o vulcão do Fogo aparece como um fantasma por detrás de uma cortina de nevoeiro. E, de quando em quando, aparece a espreitar por cima de um compacto de nuvens brancas que lhe servem de saia e que fazem lembrar os arranjos dos andores dos santos nas festas populares. Mais raramente é perfeitamente visível através de uma atmosfera cristalina, dando-nos então a impressão de que a ilha do Fogo é logo ali ao lado.


Chegámos à Ribeira de Prata ao entardecer quando havia muita gente na estrada, sobretudo homens jovens, conversando por ali aos grupos e olhando para nós com muita curiosidade. Ainda perguntámos a um jovem como é que se podia ir até à praia e ele logo nos indicou que tínhamos de voltar para trás e ir até à curva onde se encontrava um contentor verde. Aí teríamos que deixar o jeep na estrada e ir a pé por um trilho até ao mar.

O tempo já escasseava, mas ainda deu para uma olhadela ao exterior da igreja, de onde vimos as cores intensamente avermelhadas do fim tarde e onde um grupo de crianças nos pediu uma ajuda para a festa.


Seguimos pelo trilho até à praia que é uma enorme extensão de areia preta.


O mar estava agitado e as ondas quebravam ruidosas ficando a espuma ainda mais branca porque se espraiava numa mancha preta. E porque o branco era extenso projectava-se no ar uma luminosidade semelhante à que se gera num campo coberto de neve.


Um grupo numeroso de homens veio pela praia acima e foi puxando os barcos, um após outro, para os limites da praia onde os julgavam mais seguros das investidas do mar que, provavelmente, eles adivinhavam que iria ficar ainda mais bravo.

Por trás das dunas geradas pela areia preta, junto ao trilho, está uma habitação cercada com uma paliçada de cerca de um metro e meio de altura, de onde saiu um homem que nos cumprimentou e nos convidou a entrar nela.


Rejubilou quando viu que éramos portugueses e apresentou-se como sendo a pessoa que na zona tem autoridade para cuidar da praia e para zelar pela protecção das tartarugas marinhas que ali têm condições privilegiadas para a nidificação. Tinha alguns convidados com ele, indicando-nos um espaço do quintal da sua cabana onde os turistas ocasionais podem montar a sua tenda e pernoitar, compartilhando as outras facilidades da casa. Estavam com ele um rapaz local emigrado na Suíça, acompanhado por uma bonita rapariga que apresentou como sendo a sua namorada suíça. E estava ainda outro rapaz que bebia vinho português e que não se cansou de elogiar Portugal e os portugueses mostrando-se conhecedor de uma grande variedade de marcas dos nossos vinhos. Teríamos ficado ali para um excelente convívio, não fora o adiantado da hora e a chegada iminente da noite.

O trilho tinha agora no regresso um encanto especial: um bem afinado coro de ralos e grilos que baixava de intensidade até parar à medida que nós íamos passando. Mas logo que passávamos recomeçava ainda forte. O recomeço iniciava-se por um cri isolado, a que, passados uns segundos, respondiam dois ou três e a que, logo a seguir, se juntavam vários e depois muitos, muitos mais.

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