O primeiro percurso retemos as muitas curvas da estrada ladeadas por campos cobertos de canas de milho secas e sempre com muitos animais, vacas, cabras, cães e até perus, pastando livremente e, por vezes, passeando-se desacompanhados no meio da estrada. Vê-se quase sempre o mar, aparecendo aqui e ali bem desenhado o traço de espuma branca que o separa da terra.
Sinto interesse em conhecer melhor a história desta comunidade e passar ali mais tempo com aquela gente boa.
Só mais tarde é que perguntei ao Google quem eram, na verdade, os Rabelados, palavra crioula correspondente à portuguesa “Rebelados”. E vi que, na origem, está uma comunidade com costumes ancestrais muito coesa e unida pelas suas crenças religiosas, com fundamentos na religião católica. Em 1940, o bispo com autoridade na região mandou para lá uns padres idos da Europa que procuraram introduzir à força alterações profundas nas práticas religiosas que a comunidade seguia. Ela reagiu rebelando-se contra eles, isolando-se para continuar as suas práticas tradicionais. Este tipo de rebelião não é acto isolado na história da igreja católica. Referimos, a título de exemplo, a questão dos ritos na China, onde os jesuítas com a sua intransigência causaram enormes danos à Igreja. E o caso de Monsenhor Lefèbre que recusou algumas das alterações saídas do Concílio Vaticano II.
Se um dia voltar ao campo dos Rabelados de Cabo Verde, tentarei estar mais tempo com esta comunidade e levar o espírito preparado para os ajudar mais. Retenho na memória o grupo de encantadoras crianças que por ali brincavam e o cheiro da cachupa que uma mãe acabava de preparar para alimentar a sua família numa fogueira ao ar livre quase em frente da casa do Sr. Moisés.
O tempo já escasseava, mas ainda deu para uma olhadela ao exterior da igreja, de onde vimos as cores intensamente avermelhadas do fim tarde e onde um grupo de crianças nos pediu uma ajuda para a festa.
Seguimos pelo trilho até à praia que é uma enorme extensão de areia preta.
O mar estava agitado e as ondas quebravam ruidosas ficando a espuma ainda mais branca porque se espraiava numa mancha preta. E porque o branco era extenso projectava-se no ar uma luminosidade semelhante à que se gera num campo coberto de neve.
Por trás das dunas geradas pela areia preta, junto ao trilho, está uma habitação cercada com uma paliçada de cerca de um metro e meio de altura, de onde saiu um homem que nos cumprimentou e nos convidou a entrar nela.
Rejubilou quando viu que éramos portugueses e apresentou-se como sendo a pessoa que na zona tem autoridade para cuidar da praia e para zelar pela protecção das tartarugas marinhas que ali têm condições privilegiadas para a nidificação. Tinha alguns convidados com ele, indicando-nos um espaço do quintal da sua cabana onde os turistas ocasionais podem montar a sua tenda e pernoitar, compartilhando as outras facilidades da casa. Estavam com ele um rapaz local emigrado na Suíça, acompanhado por uma bonita rapariga que apresentou como sendo a sua namorada suíça. E estava ainda outro rapaz que bebia vinho português e que não se cansou de elogiar Portugal e os portugueses mostrando-se conhecedor de uma grande variedade de marcas dos nossos vinhos. Teríamos ficado ali para um excelente convívio, não fora o adiantado da hora e a chegada iminente da noite.
O trilho tinha agora no regresso um encanto especial: um bem afinado coro de ralos e grilos que baixava de intensidade até parar à medida que nós íamos passando. Mas logo que passávamos recomeçava ainda forte. O recomeço iniciava-se por um cri isolado, a que, passados uns segundos, respondiam dois ou três e a que, logo a seguir, se juntavam vários e depois muitos, muitos mais.
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