quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 9. A cidade de Nova Sintra.

A ilha Brava é, de todas as do arquipélago de Cabo Verde, aquela que, geograficamente, mais longe fica de Portugal. Contudo, das três ilhas que, desta vez, pude visitar, foi aquela em que me senti mais em casa.
Primeiro foi o quarto da pensão Viviplace que me recordou a casa de minha mãe na minha terra natal.


Tem o mesmo cheiro, o mesmo tipo de roupa de cama, o mesmo tipo de oleado plástico a resguardar o chão. Depois foi a simpatia das pessoas na rua. É obrigatório dar os bons dias a toda a gente. E ainda mais aquele colorido das casas, o traçado e o arranjo das ruas. Compreendi por que chamam à capital da Brava Nova Sintra. Há semelhanças bem evidentes com a Sintra portuguesa que os poetas Luís de Camões e o britânico Lord Byron cantaram. O mesmo ambiente atmosférico, a mesma arquitectura dos séculos dezoito e dezanove e o mesmo tipo de paisagens. Podemos ler na Wikipedia que “In 1809 Lord Byron wrote to his friend Francis Hodgson: "I must just observe that the village of Cintra in Estremadura is the most beautiful in the world.”
O que teria dito Lord Byron se tivesse tido a oportunidade de ir a Nova Sintra?
Esta linda terra teve o seu próprio poeta, Eugénio Tavares, que não se cansou de a cantar e de clamar que é a mais bonita do mundo.
Bem, o nosso quarto na Viviplace ficava no piso térreo com a janela para a rua. Numa terra em que, por tradição, ninguém se deita na noite de ano novo e fica bêbado de sono ou de bebidas, dá para imaginar a falta de condições que tivemos para um mínimo de descanso. Passaram, com frequência e durante toda a noite, pessoas isoladas ou em grupo, a falar, a declamar, a cantar e a fazer todos os ruídos que possamos imaginar. A certa altura, um grupo de homens alcoolizado quedou-se em frente da nossa janela e parecia que os tínhamos a discutir dentro do nosso quarto.
Assim, logo que veio o dia, arranjámo-nos e fomos dar a primeira olhadela à cidade. Lá andavam, na praça principal e nas ruas anexas, muitas pessoas a vaguear sozinhas ou em grupo, resistindo teimosamente ao cansaço da noite de folia.
Junto ao miradouro do Castelo, na Rua Almirante Reis, fomos abordados por um grupo de adolescentes, meio alcoolizados, muito faladores. Um deles não se inibiu de mostrar exuberantemente a sua admiração pelos portugueses e por Portugal. Diziam:
Foram os portugueses que criaram o nosso país, defenderam as nossas fronteiras e nos educaram. Se não fosse o Hospital D. Estefânia em Lisboa, para onde fui com cinco anos para ser tratado a uma doença grave, não sei o que teria sido de mim. E mais. E mais.
Aquilo que nos parecia, ao princípio, ser uma conversa fiada de jovens efusivamente comunicativos acabou por nos comover e perturbar por vermos que resultou de uma espontaneidade livre e sincera.
Após um primeiro passeio, voltámos à pensão para o pequeno-almoço.
Estava tudo ainda em silêncio. Sentámo-nos no pátio numa das muitas cadeiras de plástico vermelhas, em que metade tem o logo da Cerveja Sagres e a outra o da Cerveja Super Bock. Aproveitámos o tempo de sossego para leitura e tomar notas. Até que apareceu o Sr. Vivi, visivelmente preocupado, dizendo que o pessoal lhe faltou e que ele próprio nos iria preparar o pequeno-almoço. Já quase no fim do nosso café, apareceu a primeira empregada, afogueada, dizendo que mora na Senhora do Monte e que não tinha podido vir mais cedo porque não havia transportes. Um pouco depois apareceu a outra. E ambas passaram a preocupar-se connosco. E como chegou a hora que tínhamos combinado para nos virem buscar para irmos conhecer a ilha e ninguém aparecia, elas próprias se preocuparam em telefonar para saberem o que se passava. Bem só lá para o meio-dia e meia é que poderão vir, disseram-nos.
E aí decidimos sair para uma segunda visitinha à cidade.




Caminhando por uma das ruas, perguntámos a um rapazinho de onze ou doze anos onde era a casa de Eugénio Tavares. E logo se prontificou a levar-nos até lá. Seguiu silencioso à nossa frente, mas detendo-se sempre que nos via a observar alguma coisa ou a tirar fotografias. Logo que chegámos disse tão somente: é aqui. E foi à sua vida.


A Casa Museu de Eugénio Tavares está bem cuidada por fora.



Ao lado tem uma estátua em bronze do poeta em tamanho natural, sentado, segurando uma folha com o hino bravense.


Hino Bravense

Terra crioula, terra natal,
Tamanho e forma de um coração
Que Deus te guarde de todo o mal
Que em torno de ti o mal ruja em vão.


Filha da lava e filha do mar
Que a lava aquece e que o mar rebeija
Tua alma. Ó Brava. Com que adeja
Asa de sonho solta ao mar.


Nunca amainaste na tempestade
As velas cândidas da clara esperança.
Nunca deixaste de, na bonança,
Ser forte e doce como a saudade!


Côro
Teus filhos amam o largo mar.
O mar que os leva e que os traz de espaço.
Choras se partem p’ra não voltar.
Cantas se voltam ao teu regaço.


Este poema singelo expressa bem a realidade da ilha e dos bravenses, com os seus sentimentos e a sua diáspora. O destino mais comum dos emigrantes é a América. Tenho um amigo que fez carreira comigo no Banco de Portugal cuja família é originária de Cabo Verde. A sua mãe nasceu em Nova Sintra. Mas a família emigrou praticamente toda. Um dos sobrinhos do meu amigo, Donaldo Macedo é director da Universidade de Massassuchets (EUA) e voltou à Brava para restaurar a casa de família. E um dos irmãos do meu amigo é senador republicano. E ao que nos disseram, muitos dos bravenses emigrados deram origem a muita gente bem colocada na vida económica, intelectual, social e política americana e nunca esquecem as suas raízes de origem.
Continuámos a nossa digressão observando as pessoas, as casas, a paisagem.




Chegámos à Igreja Paroquial de S. João Baptista.
Logo à entrada estava o Sr. Vivi impecavelmente vestido com o seu fato escuro e camisa com colarinho e punhos bem engomados. Como é bem encorpado, os seus sapatos, por serem muito grandes e brancos, não passaram despercebidos. Assistimos a parte da missa em que as leituras e o evangelho foram lidos em português. Já a homilia foi feita em crioulo por um padre jovem e entusiasmado. A igreja estava repleta, havia alguns jovens e estava decorada com enfeites coloridos. O presépio tradicional estava numa gruta à esquerda no local da pia baptismal, onde foi baptizado o poeta Eugénio Tavares, em 5 de Novembro de 1867.



Saímos já um pouco apressados para regressar à pensão para o encontro marcado com o condutor e guia que nos iria guiar e mostrar a Ilha Brava.

Nota: É fácil encontrar mais informações sobre o poeta Eugénio Tavares na internet.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 8. Uma passagem de ano original

Pelas vinte horas do último dia do ano de 2012 estávamos já no porto da ilha do Fogo. Fomos os segundos a chegar àquele lugar desconfortável, de terra batida, onde os passageiros têm de esperar de pé ou improvisar assentos com as malas ou com alguma pedra ou outro objecto que tenham à mão.
O acesso ao porto propriamente dito é delimitado por uma rede metálica amovível. Chegou entretanto um grupo familiar onde se incluía um casal jovem. Ele e ela, muito comunicativos, logo entabularam conversa connosco criticando as condições daquela sala de espera ao ar livre, dizendo que já estava construída ali ao lado uma boa sala de embarque mas que nunca mais a abriam. Passaram a enaltecer a pacatez e simplicidade da vida na ilha, onde nada acontece. Mas em termos de segurança é muito melhor do que a Praia, pois lá há muitos “casubodis”. Logo esclareceram que esta palavra é uma adaptação ao crioulo da expressão inglesa “cash or body”, ou seja, o dinheiro ou a vida. Ela ia ficar na ilha pois tinha vindo apenas buscar algo que lhe enviaram da Praia. Ele seguia para a Brava onde ia cantar numa festa de passagem de ano. Para quem tencionava chegar à Brava ainda a tempo de ir procurar um local decente para a passagem de ano, o atraso que se ia verificando causava já ansiedade.
O número de passageiros aumentou consideravelmente de um momento para o outro, sinal de que o Kriola estava perto. Apercebemo-nos, assim, de que as pessoas locais estão mais habituadas ao funcionamento do porto e só descem quando têm a informação de que o barco que vem da Praia está já à vista.
Lá apareceu finalmente uma luz a mover-se no horizonte em direcção ao porto. O barco atracou e houve toda a agitação própria de um desembarque.
Até que, finalmente, recebemos ordem para avançar.


Eram vinte e duas e quinze.
Algum tempo depois, o barco começou a mexer-se. O mar tinha alguma agitação mas não era muito difícil de suportar.
Cerca de uma hora depois estávamos a desembarcar na Brava. Descemos para terra na expectativa de que as bagagens nos fossem trazidas como aconteceu no Fogo. E estávamos a olhar se isso ia acontecer. Nisto, o rapaz simpático que conhecemos no porto do Fogo dirigiu-se a nós dizendo: venham comigo; vamos lá acima buscar as vossas malas. E lá fomos até ao porão retirar as bagagens do contentor. Valeu a pena ir para ver como é grande aquele espaço, onde havia animais, principalmente vacas, camionetas carregadas, carros e bagagens. Não fazia ideia da imensidão daquela caverna por debaixo da sala de passageiros do Kriola.
Vimos que não havia táxis. Então aproximou-se de nós um rapaz convidando-nos a ir com ele na sua Hiace, uma carrinha com vários lugares. Logo que a conseguiu encher subimos para a cidade Nova Cintra, que, pelas boas referências que nos deram, tínhamos muita curiosidade em conhecer. É muito parecida com a Sintra de Portugal e daí lhe vem o nome, disseram-nos.
Chegámos ao local de destino, a pensão Viviplace. Estava a receber-nos o dono e gerente, Sr. Vivi, impecavelmente vestido com fato escuro e camisa com colarinho desapertado e punhos brancos, todo bem engomado. Deu-nos as boas vindas acrescentando que estava assim vestido porque tinha sido emigrante nos Estados Unidos durante muitos anos. Pedimos-lhe para nos arranjar um táxi para nos mostrar a ilha no dia seguinte. Mas ele respondeu que na ilha só havia um táxi. E que ia telefonar a uma Hiace que costuma fazer esse tipo de serviço. E assim ficou combinado que no outro dia, o primeiro do ano novo, às dez horas, estaria uma Hiace à nossa espera para nos mostrar a ilha. O pequeno-almoço podia ser tomado até às dez.
Saímos à procura de um sítio aprazível para a passagem de ano. Tínhamos ouvido falar nas festas tradicionais dos violinos, colectividades onde se vestem de branco e tocam e dançam até rebentar. Logo à saída encontrámos três jovens moças, trajadas a preceito que nos perguntaram se íamos para a festa. Mas nem esperaram pela resposta e distanciaram-se.
Dali à praça principal é um pulinho e vagueamos conforme o som que ouvíamos. Porém tratava-se apenas de festas privadas com o habitual ruído de aparelhagem com o batuque rock.
Chamou-nos a atenção a Igreja do Nazareno, ampla, arejada e bem iluminada, onde havia muita gente reunida numa comemoração religiosa de passagem de ano. Passámos ao lado. E seguimos vagueando, respondendo aos cumprimentos simpáticos das pessoas com que nos cruzávamos.
As horas não param com as conversas e estava quase chegada a meia-noite. Fomos para junto do coreto na praça em frente da Câmara Municipal porque aí, como acontece nas praças municipais de Cabo Verde, há rede sem fios com internet livre. E uma vez conectados pudemos passar o ano em conjunto com a nossa querida Família espalhada por Portugal e Panamá, com mil votos de feliz ano novo transmitidos em tempo real pelo éter da atmosfera, graças à internet e aos autarcas da Câmara Municipal da Ribeira Brava.
E foi assim a nossa passagem do ano de 2012 para o de 2013.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 7. A ilha do Fogo é linda

No último apontamento da nossa viagem a Cabo Verde, tínhamos acabado de almoçar na Pousada Pedra Brabo, em Chã das Caldeiras, na ilha do Fogo. É lá que está a fábrica do vinho de Cabo Verde que é comercializado com o rótulo “Chã”, Vinho do Fogo, branco e tinto. É um vinho com um paladar muito característico e que tivemos oportunidade de beber por diversas vezes. É de sabor agradável e pode competir perfeitamente com muitos dos vinhos portugueses. Foi pena que não tivéssemos tido a oportunidade de visitar a fábrica do vinho.
A estrada acaba ali na Chã das Caldeiras e a continuação da viagem implica, necessariamente, fazer o percurso pela estrada por que seguimos para lá chegar. Não é tempo perdido repetir esse mesmo caminho. Dá para admirar, mais uma vez, essa mole imensa de lava seca que, há uns anos, o vulcão cuspiu e que foi cair por ali como chuva de grandes bolas de fogo ou correu como lama em brasa pelos pontos da ilha mais inesperados, submergindo ou queimando tudo em que tocava.
Quando chegámos à Achada Furna, desviámos para a estrada que percorre a parte marítima da ilha, pelo lado nordeste e norte, passando por Mosteiros e muitas outras povoações mais pequenas, até regressarmos à capital da Ilha, S. Filipe.
A estrada é sinuosa, apertada, com pouca sinalização e sem rails de protecção. O cruzamento com outros veículos é feito com muito cuidado.
Tínhamos percorrido alguns quilómetros e, um pouco antes de Cova Figueira, vimos que estava algo no meio da estrada. Com o aproximar do nosso carro, levantou-se, sem pressa, um homem de estatura média, vestindo um casaco escuro que lhe dava até aos joelhos. Afastou-se uns metros da valeta. Ficou de costas para a estrada, feito estátua. Ao passar vi que segurava uma faca de lâmina comprida, tipo faca de mato, na mão direita. Seguimos como se não o tivéssemos visto. Pelo retrovisor do carro vi que, após termos passado, ele se foi deitar novamente na estrada. Episódio bizarro, este, mas que não mereceu qualquer reacção ou comentário por parte do nosso motorista, o Sr. Emílio.

Fomos parando aqui e ali para admirarmos a paisagem e ver os rios de lava seca dependurados nas encostas, chegando alguns deles até ao mar e ficando, por vezes, suspensos nas falésias.

São impressionantes as formações de rocha vulcânica, as casas de cores diversas alcantiladas nos sítios mais incríveis da encosta que vai até ao topo do Pico Grande. A vegetação natural da ilha, na parte norte, é mais abundante e verde porque a humidade é maior.
Notámos, em particular, as numerosas teias de aranha, que constituem autênticas redes de campanha montadas entre as diversas árvores e arbustos. As aranhas são grandes e coloridas. O Sr. Emílio disse que são inofensivas.


A certa altura cruzámo-nos com um jeep castanho e aí o nosso condutor comentou: é o presidente da câmara e a mulher. É uma figura muito conhecida e respeitada na ilha.
Já muito perto do centro de Mosteiros, a estrada atravessa um largo que, àquela hora, estava pejado de gente. As pessoas seguravam papelinhos e olhavam para um homem que, num ponto mais alto, gritava como os feirantes, que, pelos nossos mercados, costumam vender a banha da cobra.
O carro disputou a passagem com peões que, meio distraídos, olhavam para o pregoeiro e o escutavam atentamente.
Depois de passarmos esta multidão, o Sr. Emílio explicou o que se passava. É a tômbola. As pessoas compram um número ou mais. E logo vai haver o sorteio. Quem ganhar vai ter mais uma boa razão para uma alegre passagem de ano.
Em Mosteiros detivemo-nos um pouco junto ao porto para ver os barcos resguardados do mar e as salinas.

Está ali construído um Auditório Municipal, inaugurado recentemente e que tem muito bom aspecto exterior.


Continuámos a viagem pela estrada sinuosa até chegarmos a um miradouro com vistas soberbas sobre Mosteiros e áreas vizinhas. Aí nos detivemos em observação ouvindo as explicações que o nosso guia nos dava.



No percurso seguinte, a vegetação é abundante e exuberante, predominando as bananeiras, papaieiras e mangueiras. Encontrámos, com frequência, cabras a pastar junto à estrada ou espalhadas pelas encostas verdejantes. A próxima paragem foi em Salinas, umas furnas junto ao mar com condições naturais muito bonitas.

O mar batia com estrondo nas rochas salpicando-nos com a espuma que cuspia e atirava até nós. O local já teve animação, pois tinha uma pensão, local onde era possível pernoitar, com bar e um bom restaurante. Hoje o local está abandonado e vandalizado com muito lixo acumulado no interior.

As pinturas ainda visíveis nas paredes de uma das salas, permitem-nos imaginar animados bailes que se prolongariam pela noite dentro.


As casotas onde os pescadores guardam as artes, alinhadas como balneários de um campo de futebol das nossas terras do interior, contribuem para o cariz pitoresco do local. Na viagem parámos ainda em mais três sítios.
Uma primeira vez para admirarmos um volumoso palacete, construído por um emigrante na América. Foi ele que construiu tudo o que ali está com as próprias mãos. O que não pôde fazer mandou vir dos Estados Unidos. De notar que a aculturação deste emigrante o leva a manter içada, em local de destaque, a bandeira americana.


Uma segunda vez para admirarmos uma grande árvore, um embondeiro, com um tronco que, no dizer do nosso guia, só onze homens de mãos dadas conseguem abraçar.

E uma terceira vez para vermos por fora a Igreja de S. Miguel que o nosso guia menciona como tendo sido a primeira igreja construída na ilha, embora já restaurada diversas vezes. À volta as construções fazem lembrar uma antiga povoação do norte de Portugal, com convento e cemitério.

Regressados ao Hotel Xaguate combinámos com o Sr. Emílio que nos retomaria por volta das dezanove e trinta para nos levar ao porto.
Foi muito bem aproveitado o último dia de 2012. Sentimo-nos compensados porque a ilha do Fogo é verdadeiramente bonita. E o nosso motorista e guia recomenda-se.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 6. As crateras do vulcão do Fogo

À nossa frente estava aquele monte enorme do Pico Grande que parecia tocar o céu azul. Era uma negritude quase uniforme, variando de tonalidade aqui e ali, dando origem a pequenas manchas esverdeadas. O sol abrasava e havia no ar um cheiro a terra queimada ligeiramente temperado a enxofre.

A vereda estendia-se à nossa frente mas perdíamo-la de vista mais além quando ela se metia numa curva do relevo. Logo à partida, o ar seco fez-nos sentir a necessidade de beber água.

Andámos cerca de duzentos metros e ainda o terreno era relativamente plano. Mas começava a desenhar-se a encosta íngreme, aparecendo meio submerso o resto daquilo que terá sido uma vinha e um pomar. Havia algumas macieiras, agora carregadas de maçãs. Fizeram-nos lembrar as nossas macieiras bravas e colhi um fruto para experimentar o seu sabor. Era uma maçã meio azeda, dando origem, depois de mastigada, a uma sensação de doce leve com o verdadeiro paladar da maçã.

E íamos avançando. À medida que entrávamos nas entranhas daquela imensa negritude, a inclinação da vereda acentuava-se.

De vez em quando, a montanha fechava-nos o horizonte e envolvia-nos completamente como se nos estivesse a abafar. Para vencermos mais facilmente o declive do terreno subíamos aos ziguezagues. A certa altura olhámos para a frente e para trás e interrogámo-nos se não seria mais prudente regressar já. Não desistimos. Afinal o nosso destino era o Pico Pequeno e não o Pico Grande que, com a sua imensidão, nos estava a esmagar e a levar ao desânimo. No cimo do Pico Pequeno vislumbrámos umas silhuetas de diversas pessoas e isso deu-nos ânimo. Se aqueles puderam também podemos, pensámos. E lá seguimos nos nossos ziguezagues acompanhados pela monotonia do ranger da areia debaixo dos nossos pés, sentindo o coração a bater cada vez mais depressa e o ar a querer faltar-nos. As pessoas que estavam no nosso objectivo iam ficando mais visíveis. Eram dois casais e ambas as mulheres tinham cabelos louros que ficavam meio transparentes na parte em que contrastavam com o céu. O cheiro a enxofre era agora muito forte. O chão apresentava extensas manchas amarelas. É só mais um pouco. Mais um gole de água. O ranger dos sapatos ao pisar a areia vulcânica, sempre monótono desde o início da nossa caminhada, tornava-se agora irritante. Os joelhos já davam de si, acusando uma sensação de dor nas articulações. Mas chegámos. E lá estávamos nós no cimo do Pico Pequeno olhando para as duas caldeiras redondas, bem cavadas no solo, sendo a mais distante maior.

Agora as manchas vincadamente amareladas do enxofre eram mais visíveis. Havia pequenos montes de pedras feitos pelos visitantes.

Um deles quase que representava um homem de chapéu a observar o horizonte. E lá estavam os dois casais que tínhamos visto de longe. Ainda se encontravam sentados, silenciosos na sua contemplação, olhando para o lado de onde vinha a luz do sol. Na paisagem extensa e negra, aparecia, no canto direito do nosso campo de vista, a Chã das Caldeiras, povoação com algumas casas brancas.

No outro lado, erguia-se o Pico Grande, negro, muito alto e largo, imponente, avassalador, bem recortado no céu azul. Lá muito em cima vimos três pequenas nuvens de poeira. Com o zoom da máquina fotográfica vi que eram três pessoas que vinham a descer como se viessem a deslizar por aquela imensidão de cinza.

Respirámos, descansámos. Tirámos fotografias. Muitas. Fomos circundar a caldeira mais pequena e começámos o regresso.

As caldeiras não têm fogo, não emitem fumarolas, apenas espalham um intenso cheiro a enxofre queimado


É bem verdade que para baixo todos os santos ajudam. Aproveitei, durante a descida, para ver as formas bizarras que algumas das rochas assumem após o arrefecimento.

Chegámos junto ao nosso condutor em tempo. Dali ele conduziu-nos a uma exótica pousada na Chã das Caldeiras. É uma pequena muralha em pedra, rectangular, tendo as paredes uns cinco metros de altura. O pátio interior é pitoresco. Tem alguns arbustos verdes e cadeiras brancas de repouso. À volta do pátio, há quartos para alugar a visitantes que queiram pernoitar. Os quartos têm duas camas. Balneários e chuveiros são colectivos. Ouvi dizer que não tem água quente. O nosso condutor disse-nos que a pousada foi construída por um francês de nome Patrick. Que actualmente ele não vive ali mas que a deixou à sua amada crioula que agora a explora. Não sabemos se foi ela que preparou o nosso almoço, mas podemos dizer, em qualquer caso, que estava saboroso. A pousada chama-se Pedra Brabo.

Pátio da pousada Pedra Brabo

Durante o almoço olhava para a pacatez do pátio e pensava comigo: deve ser agradável passar aqui um dia ou dois, tentar ir ao cimo do Pico Grande e tocar o céu com as mãos. E, à noite, descansar neste pátio a contemplar as estrelas.

Campo de futebol de Chã das Caldeiras

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Passagem de ano em Cabo Verde – 5. A subida para o centro da ilha do Fogo

O último dia de 2012 foi para nós um dia extenso, bem vivido e cansativo. Costumamos dizer, por chalaça, que o trabalho de turista cansa muito. Pode parecer uma vulgaridade jocosa, mas, neste caso, verificou-se efectivamente. Subimos ao vulcão de altitude média do Fogo, demos uma volta à ilha pela estrada que a circunda, fizemos a viagem para a ilha Brava e passámos o ano à procura de um local de divertimento para o passar. E o fim de ano lá se foi sem esperar por nós, deixando-nos aos três a trocar votos e desejos na praça municipal da ilha Brava. A vantagem foi que, como aconteceu em todas as praças municipais onde estivemos, havia rede sem fios e internet livre. Assim pudemos comunicar com a nossa família e alguns amigos espalhados pelo mundo. Para o passeio pela ilha do Fogo contratámos um taxista, a solução mais conveniente para um grupo de três pessoas. Podíamos ter ajustado logo tudo na antevéspera com o senhor que nos transportou do porto para o hotel Xaguate. Mas não o fizemos porque ele, ao fazer-nos a conta do transporte do porto para o hotel, inflacionou o preço. Daí que tenhamos procurado uma alternativa, o que não nos pareceu difícil, pois, em S. Filipe, há muitos táxis disponíveis. Tínhamos visto num roteiro turístico o nome de um com muito boas referências e arriscámos telefonar-lhe. Estava disponível. Valeu a pena. Benfiquista de coração, vive o futebol português. Nunca veio a Portugal mas tem o sonho de vir a Lisboa para ir, pelo menos uma vez, ao Estádio da Luz.

A subida até ao coração do vulcão faz-se por uma estrada estreita, que, com excepção de um pequeno troço de alcatrão recentemente construído, é empedrado com pequenas pedras pretas, vulcânicas, portanto. Com é normal na subida às montanhas, os ouvidos vão estalando de quando em quando. A paisagem tem recortes por onde a vista e o espírito de espraiam. E sentimo-nos perdidos de enleio quando há sol e o horizonte não tem cortinas. Mas nunca há duas subidas iguais. Nesta subida ao coração do Fogo, impressionou-nos o modo como os homens disputam a terra com o vulcão. As lavas vieram num braseiro pela encosta a baixo já diversas vezes. A última foi em 1995. Tudo é esmagado e submergido por uma extensa, densa e negra massa telúrica. Quando o sol lhe bate em cheio, levanta-se, ainda hoje, um cheiro a queimado que nos seca a vista e a garganta. Mas durante toda a subida encontramos pequenas hortas.

Crianças que vendem pequenas casinhas talhadas em pedra vulcânica.

Pastores e rebanhos de cabras.

Homens e mulheres montados em burros que apalpam o chão pelas veredas sinuosas. Ou simplesmente jericos carregados de molhos de canas de milho ou paus de lenha.

Até que chegámos à base do vulcão. Aí o Sr. Emílio Centeio deu-nos as indicações suficientes. Levem água, chapéu para a cabeça e só têm que seguir o trilho. E regressem pelo mesmo caminho. Espero-vos aqui, daqui a uma hora, ou hora e meia se forem mais devagar.