quinta-feira, 29 de julho de 2010

OS PRÉMIOS LITERÁRIOS DO CASINO ESTORIL

Há uma crença generalizada de que os casinos são lugares de perdição de fortunas, onde gente viciada joga tudo o que pode por um prazer mórbido e incontrolável, ainda que com a esperança de, alguma vez, poder ter uma jogada de sorte.  As pessoas raramente associam os casinos a outras actividades úteis como seja a promoção das artes e das letras.

Como passo, por razões profissionais, uma boa parte do meu tempo nos casinos, quero dar uma ajuda para levar as pessoas dominadas por essa crença a dispensarem a estes estabelecimentos um olhar mais benevolente e a verem neles outros aspectos socialmente interessantes. É que ontem tive o privilégio de assistir à entrega de dois prémios literários criados e geridos pelo Casino Estoril: o Prémio Literário Fernando Namora, criado em 1988, que distingue a melhor obra literária escolhida, de entre muitas, por um júri distinto e exigente, e o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, criado há apenas dois anos, destinado a motivar os jovens com menos de 35 anos que se aventurem a experimentar a nobre arte de juntar letras, palavras e frases de um modo disciplinado ao ponto de formarem um livro cujo conteúdo possa ser considerado pelo júri uma surpreendente revelação literária.

Em cerimónia ocorrida no Casino Estoril, presidida pelo Senhor Presidente da República, foram ontem entregues estes prémios ao escritor Mário de Carvalho, pela publicação do livro “A Sala Magenta” e a Raquel Ochoa, pelo seu romance “A Casa Comboio”.

Vasco Graça Moura, Raquel Ochôa, Prof Aníbal Cavaco Silva e Mário de Carvalho

É a segunda vez que Mário de Carvalho recebe o Prémio Literário Fernando Namora. A primeira, foi em 1996, com o romance “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde”.

Foi dito pelo Júri que a obra deste escritor ontem premiada foi escolhida “devido às suas elevadas qualidades estilística e narrativa e à humanidade do olhar que lança sobre o universo da criação artística e da existência”.

O romance "A Casa-Comboio" conta a história de uma família na Índia, com origens portuguesas. A escritora fez, a certa altura, uma viagem àquele país asiático e não imaginava que se iria cruzar com as informações que deram origem ao livro onde conta a vivência de várias gerações da família Carcomo, que atravessa as histórias de Portugal e da Índia.

Gostei muito de ver a cara bonita e feliz da Raquel Ochoa, de 32 anos, sentada ao lado do Senhor Presidente da República, deliciada a ouvir o que sobre ela disseram Vasco Graça Moura, em nome do Júri, e o escritor mais velho e experiente Mário de Carvalho.

A dissertação feita na cerimónia por Mário de Carvalho teve um vasto e variado conteúdo. Gostei da parte em que salientou a influência do Casino Lisbonense em escritores do Século XIX e das referências ao ambiente dos casinos na produção cinematográfica internacional.

Do discurso da Raquel impressionaram-me, em especial, dois momentos:

- Aquele em que disse que “quando um idoso morre leva consigo uma imensa biblioteca”; e

- O momento final em que, pegando no prémio, estendeu o braço, se dirigiu emocionada para o pai, como se ele estivesse presente na sala, e disse: “Pai, este prémio é para ti!”

Após a cerimónia da entrega destes prémios literários tive ainda a sorte de poder jantar ao lado da escritora Teolinda Gersão, que, em 2002, ganhou também o Prémio Literário Fernando Namora, com a obra “Os Teclados”. Foi muito interessante esta aproximação à pessoa desta reconhecida escritora e compreender melhor como é a vida privada de uma profissional da literatura e descobrir ainda, em relação ao seu marido, uma vasta gama de referências a valores e vivências comuns.

Uma curiosidade final: ambos os escritores ontem premiados são licenciados em Direito.

terça-feira, 20 de julho de 2010

AS FÉRIAS NA PRAIA E A CRISE

1. Anteontem, um canal privado de televisão apresentou uma peça para demonstrar que a crise existe com efeitos bem visíveis. Para o efeito, serviu-se de um inquérito a veraneantes numa das praias algarvias. Os inquiridos eram pessoas em fatos de banho, com a pele bem nutrida e já amorenada por uns dias de sol, muito bem dispostas e sorridentes. As perguntas feitas foram estritamente talhadas para o fim em vista e a capacidade de resposta dos inquiridos devidamente condicionada para atingir o efeito desejado.

- A senhora está a fazer férias em Portugal, em vez do estrangeiro, por causa da crise...

- O Senhor está a fazer férias mais curtas.... por causa da crise ...

- E já reparou que os preços estão mais caros .... por causa da crise.


Para revelar todo o ridículo do método usado, só faltou apontar a câmara para a panorâmica da praia cheia de gente e dizer:

- Reparem como a praia está cheia de gente ... É por causa da crise.

A Praia de Armação de Pera ao fim da tarde de 19 de Julho de 2010

As pessoas que encheriam a praia estariam ali por não terem trabalho. Seria a maneira de ocuparem assim o tempo para compensar o desemprego forçado.

2. Quem parece dar sinais evidentes da crise são as gaivotas de Armação de Pera. Andam tristes e chorosas. Durante o dia afastam-se dos veraneantes e ficam silenciosamente agrupadas na orla da Lagoa como que a evitar gastar energias para sobreviverem à crise.


E, durante toda a noite, saem em manifestação de protesto e sobrevoam baixinho a Povoação, poisando, aqui e ali, nos telhados e nas varandas e soltando gritos lancinantes, por vezes em coros ruidosos:

- Oi......oi.......oi....oi...oi..oi.oi.oi.oi!!!!!

Não contentes com os protestos sonoros ousam despejar caca branca sobre os carros, com o propósito evidente de os mancharem e chamarem assim a atenção dos humanos para a crise que a todos atinge.

3. Espero que não me levem a mal em ter usado as gaivotas para falar da crise. Na verdade, tenho simpatia por estas aves que nos fazem companhia e limpam a praia, prestando aí um serviço tão meritório como o do serviço de limpeza da autarquia. Foi só para seguir a lógica do repórter da televisão e falar da crise sem deixar as férias e a praia.

Será que os repórteres da época balnear não se lembraram de ir à procura das fábricas que entretanto fecharam e esperar pelos empregados que regressam de férias e as encontram definitivamente fechadas e mostrar, então, as suas caras de estupefacção e desalento?

Aí sim, haveria sinais evidentes da crise!!!

domingo, 11 de julho de 2010

A HISTÓRIA DO MEU PRÓXIMO E DAS HÓSTIAS CONSAGRADAS.

Hoje, 11 de Julho de 2010, domingo, fui à missa do meio dia, na Basílica da Estrela. O texto do Evangelho foi aquele em que um sacerdote do Templo perguntou a Jesus, para o provocar, quem era o seu próximo. Após a leitura da parábola bíblica, a minha mente derivou para a contextualização da resposta de Cristo nos tempos modernos.

A história agora seria contada mais ou menos assim:

Um alto dignatário israelita ia numa estrada para Jerusalém. A certa altura, foi vítima de carjacking violento em que salteadores encapuzados lhe roubaram tudo, o agrediram selvaticamente e o abandonaram nu e moribundo na berma da estrada.

Mais tarde passou um judeu com altas funções religiosas. Viu que havia qualquer coisa estranha na berma da estrada, parou aproximou-se tapando o nariz com dois dedos da mão direita e disse apenas “Coitado!” . E seguiu em frente.

Passou depois um outro israelita, também com funções relevantes, talvez religiosas, militares ou mesmo políticas e fez exactamente a mesma coisa. Porquê proceder de outro modo se o destino desse pobre estava exactamente marcado para ali. E naquelas condições.

E, por acaso, passou ainda um outro viajante, um palestiniano, talvez um vendedor de artesanato, com uma pasta de documentos no tablier do carro cheia de salvo-condutos, com vistos e mais vistos, que, vendo, junto à berma, um monte de qualquer coisa que ainda mexia, parou.

Viu, pela barba, que seria um judeu tradicional, mas o seu coração condoeu-se com o sofrimento dele. Com os meios que tinha, prestou-lhe os primeiros socorros. Meteu-o no carro e conduziu-o até ao primeiro hospital. Pediu para o tratarem, assinou um slip do seu cartão de crédito em branco, como garantia de que pagaria tudo.

Contudo, a polícia veio a seguir para o interrogar e não acreditou na sua história. E começou a usar dos seus métodos para o obrigar a contar a verdade. Esgotados pelo esforço, os agentes acabaram por assinar um relatório onde estava sublinhada a frase:

“Este é daqueles terroristas que não quis confessar!”.

E foram-no entregar nas urgências para ser tratado.

Sem mais nem menos, o condoído palestiniano viu-se nos cuidados intensivos ao lado do homem judeu que tinha socorrido. Reconheceram-se. Conseguiram falar. Cruzaram as suas histórias e indignaram-se com a situação. Juraram aí fazer um pacto de proximidade para, a partir dali, lutarem publicamente para mostrar que cada um deles é “o próximo do outro”.

Após estas divagações, reparei que a missa estava quase no fim. A minha cabeça quando fica ocupada não me deixa notar o que se passa à minha volta. Tudo o que faço é por mera reacção reflexa ou por mero acompanhamento dos outros.

A comunhão já estava a ser distribuída. A fila do lado esquerdo, comungava e dirigia-se para a coxia lateral. Eu estava sentado na ponta do banco da quarta ou quinta fila e ainda a questionar-me sobre se seria correcto comparar um samaritano dos tempos bíblicos a um palestiniano da actualidade.

As pessoas iam passando mesmo ao meu lado. Algumas mexiam ainda a boca como se estivessem a comer uma verdadeira fatia de pão. Umas traziam as mãos cruzadas no peito. Outras iam com as mãos a abanar ou cruzadas atrás das costas. Todos iam passando na sua serenidade.

E a história da missa estaria esgotada aqui, no assim assim dos factos, que, por serem normais, não constituiriam nenhuma história.

Só que, de repente, houve um alvoroço. Um dos sacristães, um homem da casa dos quarenta com uma careca bem luzidia, veio em correria empurrando as pessoas e passando como podia por entre elas, dizendo: “Desculpe!, desculpe!”.

E mesmo ao meu lado, barrou o caminho a duas senhoras que agarrou pelos respectivos braços. Uma era mais velha e estava vestida normalmente. A outra, da casa dos trinta, bem feita, pele morena, tinha uns calções de ganga coçada muito curtinhos e um top cor de rosa que deixava ver os ombros e metade dos seios. Pensei que seria a roupinha desta a razão da arruaça e que me iria deliciar a ouvir o sacristão a passar-lhe um raspanete pela evidente ousadia na maneira como se vestia. Mas não foi assim.

Continuando a barrar-lhes o caminho e segurando-as a ambas pelos braços, disse-lhes em voz bem audível e peremptória:

- As senhoras ou comungam as hóstias ou mas dão de volta!

Elas, trocaram olhares. A mais velha abriu um paninho que tinha na mão esquerda e tirou de lá a hóstia que meteu na boca. A mais nova queria passar despercebida. O sacristão fixou-a nos olhos e disse-lhe com firmeza:

- E a senhora também!

Ela então abriu o punho fechado da mão esquerda, tirou de lá a hóstia com a mão direita e meteu-a na boca.

O sacristão desviou-se e elas seguiram o seu caminho.

À minha volta gerou-se um sururu de cochicho que continuou em surdina até a missa acabar.

Logo que se ouviu o prior a dizer: “Vão em paz e que Deus os acompanhe!”, houve a explosão súbita dos comentários em voz alta que passaram para muito exaltados.

- Desenvergonhadas! Vêm às hóstias a mando das bruxas! Isto é para rituais satânicos! Malvadas....

E mais ... E mais...

PS. O Diário de Notícias de 15 de Fevereiro de 2013, chamou o assunto das hóstias para a primeira página, como uma grande preocupação da Diocese de Bragança. Pelos vistos trata-se de um assunto actual que vai sendo cada vez mais comum.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O MEU FASCÍNIO PELAS FILARMÓNICAS

O meu fascínio pelas filarmónicas vem de muito longe, praticamente desde o começo da minha vida neste mundo. Nas festas da minha aldeia ou nas romarias de terras vizinhas, a banda e os foguetes mexiam realmente comigo, alvoroçando-me num júbilo que não conseguia conter. Invariavelmente sentia-me levado para o mais perto possível desses homens fardados com instrumentos brilhantes que libertavam afinadas melodias. Adorava servir-lhes de estante e  segurar-lhes abertas as partituras. Lembro-me de um dia em que, integrando um grupo de crianças, seguia multiplicando os passos à frente da filarmónica, a Música da Peroviseu, que em marcha de alvorada desfilava por uma das ruas. Eu seria um dos garotos mais pequenitos. A certa altura, um dos músicos da frente da formação pisou o meu calcanhar e descalçou-me. Passei uns segundos de verdadeira aflição, perdido no meio das filas a tentar recuperar o meu sapatito que ia sendo chutado de um lado para o outro pelos músicos que passavam. Levei mesmo um encontrão que me deixou caído no chão a ver a banda pelas costas.

Sempre senti uma curiosidade enorme em relação às notas musicais. Na instrução primária, um dos livros tinha uma canção numa das páginas. Estava esperançado que, chegando lá, o Professor explicasse como é que aquilo se interpretava. Como vi que ele ia saltar a página perguntei-lhe:

- Sr. Professor, como se lê a letra de músico?

Ele respondeu tão somente:

- Meu palerma, a letra de músico não se lê, canta-se.

Isto não impediu que, ainda hoje, eu sinta grande atracção por um concerto de filarmónica onde quer que ele ocorra. Como passeio com frequência pelo Jardim da Estrela, detenho-me, por vezes, um pouco, junto ao coreto, imaginando-o a ser utilizado por uma grande filarmónica.

O tecto do coreto do Jardim da Estrela

E não é que, no fim de semana passado, dei notícia de que tocaram aí duas bandas. Por pouca sorte, já só assisti ao dispersar. Mas abordei uma simpática tocadora de clarinete da Sociedade Filarmónica Silvense (Silves) que me pôs ao corrente do acontecimento. Nesse dia, estavam em Lisboa dez bandas que, na parte da manhã, tocavam dispersas por vários jardins da cidade e que, ao fim da tarde, desfilariam, em arruada, pela Rua Augusta na direcção do Rossio, onde ocorreria um grande concerto final.

O Rossio é um dos meus locais preferidos de Lisboa. Adoro sentar-me numa das esplanadas laterais e ver a cidade desfilar à minha frente. Numa tarde quente de verão, é possível observar a passagem de um número interminável de pessoas todas diferentes. Mais vestidas e quase despidas. Cores garridas e cores discretas. Umas elegantes e outras de cinturas avantajadas. Umas de mãos livres, outras segurando objectos dos mais diversos tipos e feitios. É o rapaz maltrapilho que vem pedir uma moeda ou o cigano a tentar vender óculos de sol ou relógios contrafeitos. Vi, a certa altura, passar uma gigantona, talvez americana, tão grande e tão gorda que as banhas ondulavam como um oceano, segundo o movimentos da perna em que se apoiava.


Que cidade tão diferente e tão bonita!

A certa altura apareceu uma jovem tocadora de uma das bandas, com o seu saxofone dependurado ao pescoço, olhando agitada para um lado e para o outro como se andasse perdida e procurasse alguém ou alguma coisa.



E eis que entrou apressada num dos estabelecimentos e saiu pouco depois refrescando os lábios com um valente cone de gelado.

E por cima de toda esta paisagem, abafando todos os ruídos, lá veio o concerto das bandas com numerosos instrumentos e tambores de vários tamanhos, tocando trechos dos mais diversos tipos e ritmos. Mesmo com o trânsito a fluir normalmente, faziam-se ouvir as suas músicas.

E, no fim, foi a surpresa. Uma banda integrada por numerosos músicos jovens das dez filarmónicas participantes deu o concerto final do encontro. Tocou não só músicas modernas, mas também trechos populares e um ou outro trecho clássico, chegando mesmo a acompanhar o tenor João Campos numa ária. Por fim, acompanhou este cantor em dueto com a cantora Rita Biscoito numa extensa rapsódia de músicas populares, onde não faltaram O Malhão e a Menina Estás à Janela.

Essa nova banda de jovens músicos já tem nome. É o “Com’Paço 10”. O empenho, competência e dedicação que vi nos jovens instrumentistas são sinais prometedores.



Tudo isto foi o III Festival de Bandas de Lisboa. Gostei. Que venha o IV.

Muitos parabéns aos jovens do “Com’Paço 10”.

P. S. - Pena é que a Música da Peroviseu não tenha participado neste encontro.