sábado, 19 de junho de 2010

NO DIA EM QUE PORTUGAL DIZ O ÚLTIMO ADEUS A JOSÉ SARAMAGO

No dia em que Portugal diz o último adeus a José Saramago, não resisto a escrever uma nota sobre ele, pessoa que muito admiro como escritor. Devo dizer que li a maioria dos seus livros. A maneira como se exprime agrada-me muito. A sua escrita tem subjacente uma entoação oral, onde a leitura escorre como se a estivéssemos a ouvir da voz de um leitor apaixonado. As ideias fortes, embora em frases longas, não são cortadas com pontos finais. Por outro lado, as vírgulas e exclamações ajustam-se às necessidades de respiração e de entoação de voz desse leitor imaginário que sempre me faz companhia quando leio Saramago. Admiro-o como escritor e como pessoa. Contudo, quero referir que, como vivi intensamente o período do 25 de Novembro de 1975, não me esqueço do que, na altura, se contou sobre ele, quando, revolucionariamente, ganhou poder dentro do Diário de Notícias.

Encontrei-me com ele frente a frente, em diálogo, apenas uma vez. Foi em 16 de Junho de 2001, na Feira do Livro, em Lisboa, no Parque Eduardo VII. Tinha acabado de adquirir um dos seus livros então mais recentes e reparei que ele se estava a sentar a uma mesa de campanha com uma caneta na mão.

Vai dar autógrafos, pensei, e dirigi-me a ele imediatamente. Pedi-lhe que me autografasse um dos livros, a que ele acedeu de imediato dizendo que estava ali para essa faina. Entreguei-lhe o livro, perguntou-me como me chamava e escreveu o autógrafo com referência ao meu nome.


A seguir olhou para mim e perguntou-me se gostava de ler a sua obra e que livros dele já tinha lido. Mencionei alguns, mas dei por mim a criticar A Caverna que, justamente tinha acabado de ler. Aí, referi-lhe que não tinha apreciado muito a comparação que faz entre um moderno centro comercial e uma caverna funda, fria e escura.

Em resposta, ele pôs a tampa na caneta, depositou-a com estrondo sobre a mesa, levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e, com uma cara carrancuda e uma voz agressiva, debitou, mais ou menos o seguinte discurso.

“Ó Senhor António Ramos, nem parece que vive numa cidade. Mais parece que nunca entrou num centro comercial. Se já lá foi, ainda não viu como é que o capitalismo lhe chupa o seu dinheiro. Embala tudo muito bem, em pacotes de quatro unidades ou mais e obriga-o a comprar um pacote inteiro mesmo que precise só de uma unidade. Isto é o capitalismo feroz a retê-lo na caverna do consumo. E que maior escuridão pode imaginar do que o consumismo capitalista ? “

Como falava muito alto, atraiu a atenção das pessoas que passavam e a fila ficou rapidamente muito longa. Reparei que havia já várias pessoas a tirar-nos fotografias.

Sentou-se num movimento rápido e disse:

“Vá pensar naquilo que lhe eu lhe disse e veja se tenho ou não razão!”

E, entregando-me o livro autografado, gritou:

“O próximo por favor!”

Sou um admirador de Saramago não só por ser um grande escritor mas também pelas seguintes referências simpáticas que faz à minha aldeia, a Capinha, na sua “Viagem a Portugal”:

“ Da Covilhã o viajante decidiu ir à Capinha. Não o levam lá especiais razões, salvo a estrada romana que seria um ramal da que, vinda de Egitânia, seguia para Centum Cellae. Nesse tempo, Capinha, chamava-se Talabara, nome que deve ser próximo parente das Talaveras castelhanas, se isto não são imaginações linguísticas do viajante, pessoa bem menos erudita do que parece às vezes. Capinha é uma aldeia agradável e onde facilmente se encontra o que se procura. Põe o viajante pé em terra, pergunta ao primeiro passante onde fica a estrada romana e logo ele o vai acompanhar, dá-lhe as indicações, subir esta calçada, atravessar uns campos, é aí. Este passante era o padre do lugar, homem novo e dasafrontado com quem o viajante virá a ter largas e debatidas conversas, caso que não é para aqui, mas aqui começou. Veio o viajante de ver a estrada romana e fez novo conhecimento, um antigo motorista da praça de Lisboa que lhe quis mostrar as fontes de Capinha, provavelmente setecentistas. É um entusiasta político este homem muito amante da sua terra, esta onde vive e a outra geral de todos nós.

O viajante é um homem rico: aonde chega, arranja amigos.

Passa o viajante a ribeira da Meimoa e segue direito a Penamacor ... “

(Extracto do livro "Viagem a Portugal”, Editorial Caminho, 1999.)

Saramago já nada pode acrescentar sobre as largas e debatidas conversas que diz ter tido na Capinha. Espero ter o privilégio de as conhecer através da escrita do nosso Bom Amigo Padre António Gama, que é o padre do lugar, homem novo e desafrontado mencionado no texto transcrito.

A calçada romana mencionada no texto que atraiu José Saramago à Capinha foi, incompreensivelmente, pura e simplesmente arrancada por uma das anteriores gerências da Autarquia Local para dar lugar a uma moderna e vulgar rua calcetada com pequenas pedras de granito.

Não sei quem terá sido o feliz passante que foi taxista em Lisboa e que teve o privilégio de mostrar as fontes de mergulho da Capinha a José Saramago.

Que José Saramago, grande Português, verdadeiro Cidadão do Mundo, requiescat in pace.

P.S. - Fomos informados de que o feliz passante que foi taxista em Lisboa e que teve o privilégio de mostrar as fontes de mergulho da Capinha a José Saramago foi o Sr. Manuel Bernardo, presentemente com quase 90 anos, e que é um dos utentes assíduos do Centro de Dia da Capinha. Será que ele se chegou a aperceber de que o visitante era o José Saramago?

1 comentário:

Billy disse...

Muito giro, este teu post! Quando estava a ler a parte do viajante, achei logo que o Padre devia ser o "nosso" Padre Gama!

Conclusão: o mundo é uma ervilha. :)