domingo, 3 de outubro de 2010

O tear

1. O ambiente social do pós-guerra

A seguir à Segunda Guerra Mundial, ainda na década de quarenta, a vida era difícil em todo o mundo. As pessoas da minha Aldeia e as famílias, impulsionadas pela solidariedade natural, deitavam mão a tudo o que podiam para sobreviverem à grande crise que então se vivia. Nesse tempo, poucas eram as casas que tinham electricidade, que, em todo o caso, se limitava a alimentar duas ou três lâmpadas. As máquinas e utensílios domésticos são invenções muito posteriores. Não havia ainda telefone. Os cântaros faziam uma bicha permanente nas duas únicas fontes de mergulho que abasteciam a população com água potável, saborosa e fresca. A terra era um bem precioso. E quem podia ter uns metros quadrados dela com um poço para tirar água, quase sempre à custa do esforço braçal aplicado no varão de um picota, ou burra como se dizia na gíria local, já era rico. E, não sei bem porquê, ainda ninguém se tinha lembrado de introduzir as casas de banho nas habitações. Não havia serviços sociais, nem Centros de Dia. Havia um padre, um médico, e dois professores, um e uma. Nas ruas as galinhas e os porcos passeavam-se livremente, mas sempre sabiam, no fim do dia, regressar às capoeiras e aos currais dos respectivos donos. De vez em quando, vinham os Guardas Republicanos, ostensivamente fardados e armados. As pessoas fugiam deles e metiam-se em casa com medo ou desandavam furtivamente para os campos. Só alguns garotos continuavam indiferentes à presença dos guardas, envolvidos nas suas brincadeiras. Lembro-me de um dia os guardas nos terem interrompido a brincadeira e nos terem perguntado de quem eram aquelas galinhas. Nós fomos com eles à casa da dona. Um dos guardas tirou o capacete e fez sair do forro um papel dobrado e amarelecido pelo suor. E leu uma postura que proibia a vagabundagem das galinhas. E obrigou a pobre da senhora a pagar dez tostões de multa. Desde então sempre senti antipatia natural pelos guardas e polícias.

De outra vez vinha eu do campo com a minha cabrita pela rédea. Em frente ao Cemitério da Aldeia, encontrei dois guardas que desciam em sentido contrário. Ao aproximarem-se de mim, disseram:

- Ó Zé anda cá!

E logo me tiraram a rédea da mão e um deles perguntou:

- Onde é que foste passear a cabra!


- Pelos cômoros, senhor guarda!


- Hum! Tu foste mas é ao Lameiro do Senhor Conde!


- Não fui não. Fui pelo caminho e ela comeu pelos cômoros que são do povo.

O outro guarda disse:

- Deixa o garoto que já está cheio de medo.


- Então está bem. Desta vez podes ir em paz.


2. A chegada do tear

Foi neste ambiente, que, no início da década de cinquenta, por certa altura do ano, apareceu, na nossa casa, um instrumento novo. Um tear novinho em folha saído das mãos de um carpinteiro da Aldeia. Ainda sinto o cheiro da madeira nova aparelhada e ouço o roçar da plaina a fazer os últimos ajustamentos para facilitar os encaixes.


O tear

A partir de então, a vida mudou muito na nossa casa, pois todos os serões passaram a incluir trabalhos de apoio ao tear.

Era uma grande azáfama permanente. Havia pelos cantos pacotes com meadas de algodão branco, inicialmente comprados pela minha Mãe no Fundão e mais tarde trazidos por fornecedores. Roupas velhas cheirando a lavagem recente eram esfarripadas em ourelos que eram enrolados em novelos que quase chegavam a atingir metade do tamanho actual de uma bola de futebol.


Novelos de ourelos

Numa segunda fase, os ourelos eram estirados e enrolados em meias canas de cerca de meio metro, formando as canelas que depois passavam por entre as fiadas de algodão no tear.

Novelos de ourelos e canelas

As meadas de algodão eram postas, uma a uma, no argadilho (dobadeira) que rodava constantemente puxada pelo fio que ia alimentando o novelo redondo até este ter o tamanho um pouco maior do que uma vulgar bola de ténis.

O argadilho

As canelas de ourelos eram preparadas às cores para depois serem usadas segundo o critério e o gosto da tecedeira para a manta ficar mais ou menos colorida.

Os braços de cruzamento e o batente

Vinha a seguir a tarefa de carregar o tear com o algodão. Era um trabalho que tinha de ser feito com paciência e que podia levar alguns dias. Um grande número de novelos de algodão, que variava segundo a largura da manta, desfazia-se lentamente, sendo os respectivos fios enrolados simultaneamente, de maneira ordenada, no carreto da frente do tear.


O carreto da frente e o de trás

Depois, cada um dos fios era puxado e passado por dois obstáculos. O primeiro era o dos braços de cruzamento, passando cada fio pela janela de um araminho de um dos braços, de modo alternado.


Régua usada para ajudar a carregar o tear evitando o eriçar dos fios de algodão

Estes braços eram accionados por pedais, subindo um e descendo o outro, deixando uma folga entre as camadas dos respectivos fios por onde era passada a canela com os ourelos. A seguir, todos os fios passavam no pente do batente e eram depois enrolados no carreto de trás. Este carreto acolhia, no começo, só fios de algodão, mas, passado cerca de um metro, começava a manta a chegar.

O pente ancaixado no batente

3. A tecelagem

Pam, pam, pam!.. Pam, pam, pam! Por dias sucessivos, de manhã à noite, as séries de pancadinhas não paravam e acabaram por se transformar num ruído de fundo monótono como o dos ponteiros do relógio.

Quando a cliente queria a manta bem batida, as séries podiam ter quatro ou cinco pancadas.

Às vezes havia urgências. Era o filho ou a filha que se ia casar ou emigrar e era importante levar a manta novinha. E então a tecelagem prolongava-se pelo serão, rendendo-se as tecedeiras, a minha Mãe e as minhas irmãs, no posto de trabalho.

Na aldeia chegou a haver várias tecedeiras, mas sempre ouvi elogiar as mantas tecidas pelas mulheres da nossa casa. Eram bem batidas e coloridas com gosto, num algodão de qualidade. Quentinhas no Inverno e frescas no Verão. Foi um produto que sempre teve escoamento assegurado. Não me lembro de alguma vez ter havido em stock uma manta sequer.

Vista lateral do tear

Este tear está velho e desfaz-se em pó de caruncho quando lhe tocamos. No entanto, espero que ainda possa servir de modelo para, a partir dele, fazermos uma cópia nova. Espero dar notícias em breve.  

2 comentários:

Mariana Ramos disse...

Que grande lição! Muito obrigada!
M

Billy disse...

Tão giro! Qualquer dia, já com o tear novo, temos de fazer um filme para pôr no youtube.