sábado, 12 de janeiro de 2013

O Dicforte está de volta


A última postagem foi publicada há já mais de meio ano. É muito tempo de inércia para um bloguista, mesmo não assíduo. Foi um longo silêncio, uma espécie de morte lenta, que só não o foi porque, afinal, o Dicforte está de volta.

E, entretanto, aconteceram tantas coisas importantes que mereciam ser partilhadas…

A vida das pessoas é constituída por linhas, parágrafos, páginas, capítulos e livros. Mas é sempre difícil dizer em qual destas gavetas é que vamos arrumar determinada situação. É o que acontece agora comigo. Comodamente digo apenas que virei mais uma página na minha vida, embora seja evidente que, racionalmente, deveria falar de mais um livro.

É que, passei pela inevitável experiência de, na empresa onde trabalhava, ao fazer 67 anos, me virem dizer que afinal já estava velho para trabalhar e que o melhor era negociar a saída. Não foram estas as palavras usadas, mas aprendi na vida a ouvir aquilo que as pessoas me querem dizer e não as palavras que usam para o fazer. Era a verdade nua e crua a entrar em mim e a paralisar-me porque nunca esperei ouvir tal chamada à realidade.

Estou velho para trabalhar e eu não me tinha dado conta disso.

 O processo foi relativamente fácil. Pusemos um baralho de cartas em cima da mesa e retirámos, logo à partida, o naipe de copas. A razão é que este naipe é representado por corações e, numa situação destas, não há espaço para pieguices. Todos os restantes naipes do baralho, paus espadas e ouros, este com maior destaque, foram importantes para chegarmos a um acordo, eu e os representantes da empresa.

E aí está. A partir do último dia de 2012, estou na situação de reformado.

 Vejo-me agora a acordar para o facto de passar a integrar o enorme grupo social da terceira idade, dos cidadãos descartáveis, dos que pagaram toda a vida para sistemas e subsistemas de segurança social e que agora estão a ser acossados pelos governantes com cortes nas pensões e na assistência.

Eu já ouvia dizer que os reformados não estavam a ser bem tratados. Mas só agora me estou a dar conta de que, pior ainda, estão a ser mal tratados. E pelo que leio na imprensa, se as instituições funcionarem, irá ser a ganância sobre os reformados que irá determinar a inconstitucionalidade de parte do orçamento estatal para este ano. E se isso acontecer, os miúdos do Governo merecem todos uma boa palmada no rabo.

Uma vez virada a página, subsiste a vantagem de mais tempo disponível para o Dicforte ser mais assíduo. Até já.

sábado, 7 de julho de 2012

A temível solidão absoluta

1. Era o meio da tarde do dia de S. Pedro de 2012, sexta-feira, quando cheguei à minha aldeia. Logo me disseram que ia haver um funeral. Perguntei de quem era mas ninguém me soube dizer ao certo. Era de uma senhora de que ninguém sabia o nome e que, após alguma insistência, me identificaram como sendo a mãe de Fulano tal. Não identificavam o Fulano pelo nome próprio mas sim pela alcunha. É que, na minha aldeia, há o estranho costume de as pessoas serem reinventadas, ou clonadas, através de alcunhas. Assim todas as pessoas passam a ser vistas como se fossem actores disfarçados numa peça de teatro ou vistas numa imagem de espelho. Se o funcionário do registo civil viesse fazer a conferência das pessoas pelos dados do registo e perguntasse onde está o senhor que foi registado no dia tal, ninguém lhe saberia dizer quem é. Ele teria de escrever “desconhecido” ou mesmo “já não existe”. E teria razão porque, na verdade, só são conhecidos os clonos das pessoas que deveriam existir.

2. É costume as pessoas da aldeia acompanharem os seus conterrâneos à última morada, mesmo que não os conheçam bem. Ao princípio, eu pensei que o faziam por desinteressada solidariedade. Mas depois convenci-me de que o fazem também por interesse próprio. Querem ter a certeza de que ainda podem andar esse caminho pelo próprio pé.

3. Já se começa a ouvir ao longe um rumor de coro de oração colectiva no tom de mi da escala central. É o funeral. Vem debitando Avé Marias em que a primeira parte é dita por uma só voz e a segunda por um coro relativamente numeroso de vozes femininas, acompanhado num tom mais baixo pelo ronronar do motor da carrinha mortuária. Em apenas três minutos, chegam ao ponto em que me encontro. Os homens vêm à frente organizados em pequenos grupos que, por sua vez, falam entre si das coisas mais diversas. Vem a seguir um outro grupo, com mais mulheres do que homens, que, vestindo opas pretas, erguem a cruz processional e as bandeiras das confrarias. Junto-me ao grupo dos homens que seguem à frente nas suas conversas, alheios à prece colectiva. É um instante enquanto se chega à porta da capela do cemitério. Os senhores da funerária levam a urna para dentro. Uma parte dos acompanhantes entra. A maioria fica cá fora. Lá dentro forma-se um círculo à volta da urna que é colocada a meia altura sobre dois suportes. Mais algumas Avé Marias pela alma da nossa defunta irmã e por todas as almas que repousam neste cemitério. Que descansem em paz, ámen. O Padre oficiante tira a estola roxa e dobra-a em jeito de livro e sai e a quase totalidade das pessoas saem com ele. O verdadeiro funeral acabou ali. Os senhores da funerária levam agora a urna para o local onde vai ser enterrada. Mas isso já não é funeral, é o inevitável enterramento.

4. Fiquei a pensar nos funerais de antigamente. Vinha uma campainha à frente. Havia a caldeirinha e água benta e o hissope. O livro dos ritos que o Padre abria duas ou três vezes em pontos de paragem obrigatória. Era aí que as orações eram feitas, algumas delas em latim. Recordo-me de ouvir o simbólico “De profundis” que o Padre recitava enquanto aproveitava para passar a vista pelas pessoas que ali estavam à volta. Era costume o Padre acompanhar os defuntos até estes descerem à terra. Várias vezes pegava no hissope, molhava-o na caldeirinha e benzia a terra e a urna. E tudo acabava com uma última bênção, após o que solenemente anunciava: podem cobrir. Sucediam-se automaticamente os gritos e sentidos prantos dos entes queridos. Os funerais de antanho eram a sério. Agora até os funerais já são de plástico.

5. À saída da capela estava o filho da senhora defunta facilmente distinguível por vestir uma camisa preta. Cumprimentei-o com os formais sentidos pêsames e perguntei-lhe que idade tinha a mãe. Ele fixou-me e balbuciou um tremular de lábios acompanhado por um instantâneo enrugar da face. Mas não foi capaz de responder. Uma mulher veio em seu auxílio e disse:

“Tinha 97. Eu nem sabia que esta mulher ainda era viva. Desde que o marido morreu, e isso já foi há anos, nunca mais quis sair de casa. Fechou-se lá e não abria a porta a ninguém. Nem as senhoras do Centro de Dia conseguiram fazer nada dela. Só o filho é que lá conseguia ir de vez em quando. Ontem ele foi lá e já a encontrou gelada. Estava morta há vários dias. Já cheirava.”

  6. Como terão sido os dias e as noites desta mulher que optou pela solidão absoluta? Para ela talvez não houvesse tempo com dias e noites. Talvez apenas uma ideia fixa, quem sabe, a imagem do último momento de felicidade que terá tido com o seu defunto marido.

  Como foi possível isto acontecer nos tempos actuais? Na verdade é temível a solidão absoluta.